Capítulo 8
José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho
Adriana Carvalho Pinto Vieira
A inovação tecnológica no Brasil consolidou-se, ao longo das últimas décadas, como um importante fator para garantir o crescimento econômico. Desde o final da década de 1980, o governo federal procurou definir políticas públicas com a oferta de incentivos fiscais que pudessem fomentar a inovação e o desenvolvimento tecnológico na economia.
O conhecimento transformou-se em variável estratégica do desenvolvimento tecnológico, deixando de ser apenas um atributo incorporado aos produtos. A articulação entre ciência e conhecimento foi considerada o principal ativo da economia global – denominada de “economia do conhecimento”. Ao mesmo tempo, a garantia da propriedade intelectual firmou-se como pilar institucional do desenvolvimento de novos conhecimentos (ÁVILA, 2008).
O marco regulatório brasileiro só foi definido na metade da década de 1990, logo após o governo brasileiro ter assinado, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Acordo Trips (Acordo Relativo aos Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio), cujo nome em inglês é Trade Related Aspects of Intellectual Rights Including Trade in Counterfeit Goods (Trips). As resoluções aprovadas nesse acordo, que só entraram em vigor em 1995, têm o prazo de 11 anos para serem totalmente implementadas. Pela Lei nº 9.279/1996, Lei de Propriedade Intelectual (BRASIL, 1996), regularam-se os direitos e as obrigações relativos à propriedade intelectual no Brasil. Posteriormente, conforme a Lei nº 9.456/1997 (BRASIL, 1997), criou-se a Lei de Proteção de Cultivares (LPC), que introduziu uma política de proteção intelectual específica para a agricultura.
Em 1999, foram definidos os fundos setoriais, que são os instrumentos de financiamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação. A criação dos fundos setoriais representou um novo mecanismo de financiamento e promoção da inovação, fortalecendo o sistema de ciência e tecnologia nacional e promovendo maior sinergia entre universidades, centros de pesquisa e setores produtivos.
A Lei nº 10.332/2001 (BRASIL, 2001) criou o fundo específico de fomento ao setor agropecuário (CT-Agronegócio), cujo objetivo é promover a capacitação científica e tecnológica nas áreas de agronomia, veterinária, biotecnologia, economia e sociologia agrícola. Além disso, buscou-se a atualização tecnológica do setor em geral, ampliando os investimentos na área de biotecnologia tropical e na difusão de novas tecnologias agrícolas.
Anos mais tarde, foi criada a Lei de Inovação, Lei nº 10.973/2004 (BRASIL, 2004), que estabeleceu medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, buscando, assim, a autonomia tecnológica e o desenvolvimento industrial do País. No ano seguinte, a Lei nº 11.196/2005, também conhecida como Lei do Bem (BRASIL, 2005), veio a instituir regimes especiais de tributação e aquisição de bens de capital, bem como complementar a legislação vigente de incentivos fiscais.
Apesar dos vários esforços institucionais e jurídicos criados pelo Brasil, ao longo do tempo, para promover o desenvolvimento tecnológico, é preciso ainda diminuir o vácuo entre o conhecimento aqui gerado e a fronteira tecnológica de produção existente nos mercados mais avançados, considerando que ainda persiste uma forte desconexão entre ciência e mercado.
Isso é constatado pelo baixo número de artigos indexados publicados e pelo pequeno número de patentes depositadas no Brasil, bem inferiores aos de outros países. De acordo com Lotufo (2009), o dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em relação ao produto interno bruto (PIB) foi de 1,16%, sendo a maior parcela referente a investimentos públicos. Fazendo uma comparação com os países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), constata-se que eles apresentaram um indicador em torno de 2,2% do PIB, tendo privilegiado o gasto privado em detrimento do público.
No setor industrial brasileiro, comparativamente a outros mercados, a taxa de inovação é considerada relativamente baixa. Porém, ao focar o setor agropecuário, o Brasil torna-se uma referência em inovação e tecnologia tropical. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é um caso de sucesso. Tal empresa promove a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação em todas as suas fases, ampliando e difundindo os novos conhecimentos no mercado.
O ambiente tecnológico e institucional está influenciando a forma de fazer pesquisa e as relações que se estabelecem entre seus participantes. Se a inovação está cada vez mais presente nessas atividades, a propriedade intelectual passa a ser um tema estratégico na formação do arcabouço institucional do novo regime tecnológico e, por conseguinte, da dinâmica de inovação da agricultura. Nesse sentido, o marco regulatório que se constituiu é responsável pela incorporação de novas tecnologias, associadas a um padrão mais intensivo em ciência, o qual redefine o conjunto de investimentos para o setor.
Desde a promulgação da LPC, os mecanismos de proteção à propriedade intelectual tornaram-se fundamentais para a coordenação e a gestão da pesquisa agropecuária e para o fortalecimento do aspecto institucional da pesquisa pública. Este artigo tem por objetivo estudar o impacto da regulamentação do sistema de propriedade intelectual sobre a pesquisa do setor agropecuário e sobre o número de cultivares protegidas no mercado nacional. O trabalho está subdividido em quatro seções, incluindo, como primeira seção, esta breve introdução. A segunda seção aponta o cenário da inovação no agronegócio. A terceira faz uma análise do sistema de propriedade intelectual no setor. Por fim, na quarta, apresentam-se as considerações finais.
A trajetória de uso intensivo de tecnologia e inovação na agricultura, favorecida pela revolução tecnológica que o agronegócio experimentou ao longo de gerações, ainda proporciona retornos visíveis na competitividade e no dinamismo do setor agropecuário. Contudo, segundo Fornazier e Vieira Filho (2012), o Brasil tem um longo caminho a percorrer até alcançar o patamar da fronteira tecnológica internacional de nações mais desenvolvidas. Há forte heterogeneidade estrutural e concentração produtiva, o que se relaciona ao acesso diferenciado dos agricultores à tecnologia e aos novos conhecimentos.
Os estudos sobre a inovação tecnológica na agricultura, especialmente os realizados no Brasil desde a década de 1960, mostraram as profundas mudanças ocorridas no setor: da estagnação aos elevados ganhos de produtividade. Especialistas preconizavam a melhoria da infraestrutura de importação de grãos para poder fazer frente ao grave problema de abastecimento que se delineava (MELO, 1983). O Brasil era importador líquido de alimentos. Com o crescimento da produtividade total dos fatores pela agricultura brasileira1, notadamente após a década de 1970, e com sua intensificação a partir dos anos 1990, a ameaça de desabastecimento felizmente desapareceu.
No que se refere à transformação agrícola dos anos 1960 e 1970, Schultz (1964) apontava para as vantagens da modernização da agricultura, o que Vieira Filho (2009) chamou de tecnologia embarcada, guiada pela indústria fornecedora de insumos modernos. Para o caso brasileiro, porém, era difícil aplicar e interpretar a abordagem da modernização, uma vez que o crescimento da produção era visto como dependente do conteúdo tecnológico cristalizado nos insumos, em grande parte importados do mercado externo.
Na década de 1970, o problema deslocou-se para a adequação da política tecnológica à dotação de fatores, assumindo importância a inovação induzida (HAYAMI; RUTTAN, 1988). Procurava-se compreender as condicionantes da adoção tecnológica, que, com o passar do tempo, intensificaram a preocupação com a forma como dirigir o processo de geração de inovações – momento em que surgiu a Embrapa. Acreditava-se que qualquer problema no processo de adoção e difusão de tecnologias agrícolas associava-se a gargalos no fornecimento de insumos modernos. Para corrigir a deficiência em produtividade, bastaria a realização de investimentos na cadeia fornecedora de tecnologia.
Não foi essa, porém, a conclusão a que chegaram os estudos de Vieira Filho e Silveira (2012), para quem o desempenho da agricultura (notadamente no Brasil) era resultado do processo de inovação. Nesse sentido, novas abordagens seriam necessárias para explicar o crescimento agrícola para além do modelo de insumos modernos2. Seria preciso compreender que a agricultura não é um setor residual da economia e que ela incorpora continuamente inovações tecnológicas e, por consequência, o progresso técnico, de forma endógena.
As fases da pesquisa agropecuária no Brasil podem ser resumidas em três momentos distintos, conforme visto na Figura 1. O primeiro momento vai até o início do século passado, sendo caracterizado por ausência de pesquisa e baixa competitividade. Entre 1900 e 1973, embora com baixo nível de investimento, tem início a pesquisa aplicada, que era, até então, realizada de forma isolada e pouco coordenada. Houve, no mercado internacional, ganhos moderados de competividade, os quais resultaram em uma pauta mais diversificada de produtos. Somente a partir de 1973, com a criação da Embrapa, o planejamento da pesquisa no setor agropecuário consolida-se, o que promove uma gestão de recursos humanos associada ao desenvolvimento de novos conhecimentos. Experimenta-se, então, elevada competitividade produtiva, com o avanço da transferência de tecnologia aos produtores.
Figura 1. Fases da pesquisa agropecuária no Brasil.
Fonte: Instituto Inovação (2006).
Embora dispersa regionalmente e pouco articulada a um projeto de planejamento nacional, a construção da infraestrutura institucional de fomento ao investimento em P&D do agronegócio brasileiro foi constituída antes da criação da Embrapa (Tabela 1). O Instituto Agronômico de Campinas (IAC), por exemplo, é uma instituição centenária, que foi de suma importância para a pesquisa de melhoramento genético do café, cultivo responsável pelo início do processo de industrialização da economia brasileira. A formação de corpo técnico na área agrícola não pode ser dissociada da criação de importantes escolas e universidades, destacando-se, entre elas: a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em 1902; a Universidade Federal de Lavras (Ufla), em 1908; e a Universidade Federal de Viçosa (UFV), em 1927.
Tabela 1. Múltiplas instituições dedicadas à promoção do melhoramento genético no Brasil.
Instituição |
Ano |
Fundação do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) |
1887 |
Primeira escola de agricultura e medicina veterinária |
1898 |
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) |
1901 |
Universidade Federal de Lavras (Ufla) |
1908 |
Universidade Federal de Viçosa (UFV) |
1927 |
Instituto Agronômico de Minas Gerais |
1930 |
Criação da primeira empresa de sementes no Brasil (Agroceres) |
1938 |
Criação do Serviço Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA) |
1940 |
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) |
1951 |
Criação da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) |
1962 |
Início da Pós-Graduação na Esalq |
1963 |
Criação da Associação Brasileira dos Produtores de Sementes (Abrasem) |
1971 |
Criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) |
1973 |
Entre a criação da primeira empresa de sementes (Agroceres), em 1938, e a constituição da Associação dos Produtores de Sementes (Abrasem), em 1971, o País edificou instituições relevantes no financiamento da pesquisa, tais como: o Serviço Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Não obstante, a Embrapa representou um esforço conjunto de coordenação nacional da pesquisa agropecuária, que foi muito bem-sucedido, com a tropicalização da soja nos anos 1980, e que passa, desde a década de 1990, por uma reestruturação para adaptar-se às mudanças do marco regulatório.
A criação da Embrapa teve como objetivo dar maior agilidade às ações necessárias ao desenvolvimento do setor agropecuário do Brasil. A empresa nasceu com quatro grandes propósitos: 1) garantir o abastecimento de alimentos nas cidades, onde se concentra a maioria dos pobres; 2) desenvolver o interior do País, gerando emprego, renda e bem-estar na área rural; 3) preservar a base de recursos naturais do território brasileiro; e 4) criar excedentes para a exportação.
Ao mesmo tempo em que se criou o arcabouço institucional de pesquisa agropecuária, aumentou-se a demanda por produtos agrícolas. Surgiu, então, o desafio de produzir mais alimentos, associado à inclusão tecnológica, à distribuição de renda e à sustentabilidade ambiental. A questão tecnológica torna-se um fator determinante nesse debate, uma vez que produzir mais e com menos recursos representa não somente elevar a produtividade, com a redução de custos, mas também alcançar uma produção mais eficiente e sustentável.
A modernização do setor agrícola exige crescente articulação entre os setores público e privado, no intuito de melhorar a competitividade e promover mudanças no marco institucional vigente. A agricultura destacou-se pelo dinamismo e pela expansão do mercado mundial, bem como pelo papel estratégico que o setor tem desempenhado na economia brasileira.
Com elevada diversificação produtiva, o agronegócio é cada vez mais importante para a economia do País, representando cerca de 30% do PIB e gerando superávits no comércio internacional, o que contribui para o equilíbrio das contas externas. A conquista de novos mercados e a busca contínua de ganhos de produtividade aumentaram a capacidade do setor agrícola de contribuir para a geração de emprego e renda. O controle das contas externas apresenta-se, assim, como elemento central das políticas econômicas que visam à estabilidade do crescimento econômico.
Apesar da retração do comércio mundial durante a crise financeira de 2008, a participação agrícola brasileira no comércio mundial tem sido ascendente, conforme demonstrado na Figura 2. Enquanto a participação das exportações totais da economia brasileira cresceu 0,4% entre 2001 e 2009, a porcentagem das exportações agrícolas brasileiras em relação às exportações agrícolas mundiais aumentou 2% para o mesmo período. Vale lembrar que, na última década, os preços internacionais das commodities agrícolas foram crescentes.
Figura 2. Participação das exportações da economia brasileira no mercado mundial (em %).
Fonte: dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (BRASIL, 2012a).
Castelo Branco e Vieira (2008), analisando o modelo da Embrapa, observaram que a Empresa promove parcerias para potencializar o processo de inovação relacionado com a pesquisa, por meio do uso autorizado de invenções de parceiros, quando necessário, e do licenciamento das tecnologias desenvolvidas conjunta ou individualmente.
Pode-se concluir que o respeito e o uso dos direitos de propriedade intelectual constituem um mecanismo que facilita a interação entre conhecimento, invenção e inovação. Essa interação circula entre os diversos agentes econômicos e atores – pesquisa pública, empresa privada nacional ou multinacional, organização de produtores rurais – que participam do processo de inovação, gerando riqueza, produzindo ganhos de competitividade e realimentando o processo inovador.
Os avanços tecnológicos revolucionaram a divisão e a especialização do trabalho, e também o processo de criação e produção de novos bens. Delimitaram-se claramente as fronteiras entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. O mercado e a concorrência, por si sós, já não eram suficientes para assegurar a apropriação da riqueza gerada. As relações econômicas passaram a ser mediadas por contratos e instituições, cuja finalidade é proteger os direitos de vários agentes envolvidos, conciliar conflitos e diminuir os custos de transação em geral, mediante regras claras e mecanismos de enforcement (VIEIRA; BUAINAIN, 2004).
No decorrer da década de 1990, depois de o Brasil ter aderido ao acordo Trips, ocorreu uma mudança radical na institucionalidade do sistema de propriedade intelectual, com a criação de um mecanismo de enforcement dos princípios e das regras, até então ausentes. Com um novo marco regulatório de patentes e direitos de propriedade, a simples possibilidade de retaliação comercial ou de exclusão de negociações importantes em mercados internacionais levou muitos países em desenvolvimento a aprovar, no menor prazo possível, legislações sobre propriedade intelectual em todas as áreas, desde a propriedade intelectual até os direitos de melhoristas.3
No que se refere às plantas, o Brasil optou pela proteção de cultivares, seguindo o padrão da ata da International Union for the Protection of New Varieties of Plants de 1978 (Upov),4 que proibia a dupla proteção. No que se refere à proteção de cultivares, adotou-se um sistema sui generis, regulado pela LPC. De acordo com o artigo 2º dessa lei, transcrito abaixo, a proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referentes à cultivar dá-se por prazo determinado.
A proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetua mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerando bem móvel para todos os efeitos legais e única forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa, no País, por um determinado prazo de tempo (BRASIL, 1997, art. 2º).
Esse cenário pode ser verificado pela atuação da Embrapa nos últimos anos, confirmada no elevado número de certificados de proteção de cultivares – a Empresa detém o maior número de cultivares protegidas. O marco regulatório de propriedade intelectual, sob esse aspecto, foi benéfico para várias empresas, incluindo a Embrapa, por favorecer a proteção do conhecimento advindo dos investimentos de longo prazo.
Com a aprovação da LPC, viabilizou-se a apropriação de inovações, o que garantiu a propriedade intelectual sobre as cultivares, permitindo, por exemplo, cobrar, dos sementeiros nacionais, o pagamento de royalties pelo uso de sementes e de taxas tecnológicas. As regras jurídicas estimularam o crescimento dos investimentos privados no setor. Tais investimentos, de origem externa, foram direcionados prioritariamente ao desenvolvimento de novas cultivares, especialmente naqueles mercados nos quais o cultivo já estava estabelecido. A soja, por exemplo, mostrou-se o grande filão do mercado brasileiro de sementes, que priorizou o plantio de transgênicos. Ou seja, a entrada das transnacionais no mercado de variedades de soja deveu-se, em parte, à geração de novas biotecnologias, cujo principal vetor de aplicação é a semente.
A criação dessa norma promoveu, portanto, uma reordenação do mercado de sementes, com o ingresso de novos stakeholders, principalmente empresas transnacionais, bem como a redefinição dos players nacionais. Apesar da limitada capacidade de investimento do setor público – representado, no Brasil, pela Embrapa e por órgãos estaduais de pesquisa –, o respeito aos direitos de propriedade intelectual abriu espaço para parcerias entre instituições públicas e privadas, nacionais e multinacionais.
De acordo com Sá (2010), a partir da aprovação da LPC e da adesão do Brasil à Upov, introduziu-se no País uma política de proteção à propriedade intelectual específica para a agricultura. Tomando por base as normas gerais da Upov, foram delineadas as políticas de proteção de cultivares, como os sistemas de plant variety protection (PVP).
Para entender melhor o mercado de cultivares no Brasil, é preciso fazer uma breve retrospectiva. Procurou-se, no período 1998–2011, selecionar os principais cultivos, em termos de valor médio. Conforme descrito na Figura 3, esses foram selecionados por ordem de importância, em termos de valor médio. A soja despontou como o principal cultivo, por ter em média 23% do valor de todos os cultivos produzidos no Brasil, no período referenciado. A produção de cana-de-açúcar ocupou o segundo lugar, com 15% do valor médio, seguida do milho, com 12%. A soja, a cana-de-açúcar e o milho representaram, por si sós, 50% do mercado. Com participação também elevada, mencionam-se os cultivos de café e de algodão, que responderam por 8% e 3%, respectivamente.
Figura 3. Participação média, em percentual, do valor dos cultivos (1998–2012).
Fonte: dados do Levantamento Sistemático da Produção Agrícola (2011).
Decorridos 15 anos da promulgação da LPC, o cenário da pesquisa científica, no Brasil, no desenvolvimento de variedades de plantas agrícolas mudou sensivelmente. De acordo com a Tabela 2, separando-se os cultivos de maior importância econômica, tem-se o número acumulado de cultivares protegidas pelo Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC). De 1998 a 2012, nota-se um crescimento do número de cultivares protegidas no mercado brasileiro, que saltou, nesse intervalo de tempo, de 51 para 1.708. Tomando como exemplo apenas o mercado de soja, constata-se que, em 1998, eram 39 cultivares protegidas. Em 2012, somavam-se a essas mais 500 cultivares, totalizando 539. Dessas últimas, nesse mesmo ano, cerca de 30% eram de propriedade da Embrapa. Das 158 cultivares protegidas da Embrapa, 39 eram transgênicas.
Tabela 2. Número acumulado de cultivares protegidas no SNPC no Brasil, no período 1998– 2012.
Cultivar protegida |
1998 |
2001 |
2004 |
2007 |
2010 |
2012 |
Participação percentual da Embrapa no total de cultivares em 2012 (b/a) |
|
Total (a) |
Embrapa (b) |
|||||||
Soja |
39 |
94 |
179 |
302 |
442 |
539 |
158 |
29,3 |
Cana-de- |
6 |
32 |
51 |
71 |
90 |
110 |
0 |
0,0 |
Milho |
0 |
17 |
28 |
32 |
49 |
51 |
44 |
86,3 |
Café |
0 |
0 |
0 |
6 |
7 |
8 |
1 |
12,5 |
Algodão |
1 |
11 |
30 |
48 |
56 |
60 |
28 |
46,7 |
Outros |
5 |
55 |
169 |
352 |
673 |
940 |
342 |
36,4 |
Total |
51 |
209 |
457 |
811 |
1.317 |
1.708 |
415 |
24,3 |
Fonte: dados do Mapa (BRASIL, 2012b).
Vale lembrar que, nos cultivos de soja, milho e algodão, foi inserido o mercado de transgênicos, que necessariamente precisará de maior proteção do conhecimento cristalizado na semente. Quando se observa o número acumulado de cultivares no ano de 2012, a soja, a cana-de-açúcar e o algodão despontam como os principais mercados de proteção do conhecimento. Com efeito, foram 539 cultivares protegidas em soja, 110 em cana-de-açúcar e 60 em algodão. O milho seria o quarto cultivo em número de cultivares, mas o cultivo com maior participação da Embrapa – cerca de 86%. A participação, também da Embrapa, no mercado de algodão é expressiva, ficando em torno de 47%. Na classificação “outros”, encontram-se hortaliças, flores, frutas e outros grãos de menor importância em termos de valor produtivo. Independentemente desses resultados, a Embrapa possui mais de um quarto (36%) da proteção em outras variedades.
Pela Figura 4, acompanha-se a participação da Embrapa, do setor público (exceto a Embrapa) e do setor privado no número de cultivares protegidas no SNPC. No conjunto, nota-se que há forte participação do setor público na proteção do conhecimento, o que enfraquece um pouco o mito de que a Embrapa é a única empresa do setor público que influencia, de forma decisiva, a pesquisa agropecuária nacional. Tanto a cana-de-açúcar quanto o café mostram que outras instituições públicas são essenciais para a geração de novos conhecimentos. Por exemplo, na soja, a participação pública é de 39% – incluindo a Embrapa; na cana-de-açúcar, de 41%; no algodão, de 43%; no milho, de 94%; e no café, de 100%. A participação privada concentra-se justamente nos mercados para os quais existem transgênicos.
Figura 4. Participação, em percentual, dos setores público (da Embrapa e de outras instituições públicas) e privado no número de cultivares protegidas no SNPC (1998–2012).
Fonte: dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (BRASIL, 2012b).
Pode-se perceber que a inovação no setor tem sido contínua. Os mecanismos de proteção da propriedade intelectual foram fundamentais para tal crescimento, visto que são essenciais na organização e na gestão do conhecimento e da inovação no agronegócio, fortalecendo a institucionalidade da pesquisa pública e privada. Houve um aumento considerável no número de cultivares registradas.
Pela análise dos registros de proteção das cultivares no SNPC, verificou-se que houve um expressivo aumento na proteção de cultivares por parte de empresas transnacionais, principalmente de cultivares de flores, hortaliças, batatas e frutas. Em relação à cultivar de soja, houve aumento de parcerias entre empresas, tanto entre as públicas e as privadas, quanto entre as nacionais e as multinacionais, bem como registrou-se a entrada de novos stakeholders no mercado de melhoramento genético de soja.
O número de empresas detentoras de cultivares protegidas tem aumentado com o passar do tempo. Esse fato pode ser comprovado com a cultivar de soja, cujo melhoramento genético, na década de 1980, era realizado pela Embrapa e por poucas empresas, com destaque para a FT Sementes. A partir do ano 2000, a indústria de sementes passou por significativa reestruturação. Em 2012, diversas empresas já disputavam o mercado e possuíam programas específicos de melhoramento. A Figura 5 indica as cinco maiores empresas atuantes na área de melhoramento genético – convencional e transgênico –, com dados analisados no SNPC.
Figura 5. Número de cultivares protegidas de soja – convencionais e transgênicas – pelas principais empresas detentoras (1998–2012).
Fonte: dados do Mapa (BRASIL, 2012b).
Conforme Castelo Branco e Vieira (2008), a liderança mundial por parte da Embrapa no desenvolvimento de tecnologias aplicadas à agricultura de clima tropical, adaptadas aos diversos ecossistemas do território nacional, demonstra a sua capacidade de tratamento do sistema de propriedade intelectual, permitindo a promoção e a disseminação do conhecimento e das inovações, de forma a preservar o investimento realizado.
No setor industrial brasileiro, há ainda um grande espaço vazio separando a ciência do mercado. Mas esse não é o cenário do agronegócio. A Embrapa comprova isso. Ela é um modelo que gera pesquisa, desenvolvimento e inovação, promovendo parcerias, com o objetivo de potencializar o processo de inovação relacionado à pesquisa, mediante o uso autorizado de invenções dos parceiros, quando necessário, e do licenciamento das tecnologias desenvolvidas conjunta ou individualmente. Nesse cenário, é possível concluir que o respeito aos direitos de propriedade intelectual e o seu uso constituem um mecanismo que facilita a interação entre conhecimento, invenção e inovação.
Nos últimos anos, a propriedade intelectual passou a ser um recurso estratégico para a formação do arcabouço institucional do novo regime tecnológico e, por conseguinte, da dinâmica de inovação da agricultura. Nesse sentido, o marco regulatório constituído é responsável pela incorporação de novas tecnologias, associadas a um padrão mais intensivo em ciência, o qual redefine o conjunto de investimentos para o setor.
Desde a promulgação da LPC, os mecanismos de proteção à propriedade intelectual tornaram-se fundamentais para a coordenação e a gestão da pesquisa agropecuária, e também para o fortalecimento do aspecto institucional da pesquisa pública. Colaborou também para incentivar a formação de parcerias público-privadas, ou mesmo a parceria entre empresas nacionais e multinacionais.
Infere-se que são funções da propriedade intelectual:
Nesse sentido, o Instituto de Propriedade Intelectual (Inpi) preceitua que o País deve proteger e estimular cada vez mais as inovações, para manter a competitividade no setor, tanto agrícola quanto industrial.
O Brasil deve continuar a desenvolver pesquisas no setor agrícola, pois que tem competência adquirida ao longo de anos. Desfruta de posição geográfica privilegiada e de uma elevada diversidade ambiental, que lhe garantem vantagens comparativas dinâmicas em relação aos seus competidores diretos. Esse fator ganha relevância quando consideradas as novas janelas de oportunidades tecnológicas, como a transgenia e a nanotecnologia, as quais, associadas e com campos científicos tradicionais, abrem uma nova fronteira do conhecimento, e de grande potencial.
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