Capítulo 2

O pensamento evolutivo ao longo da história da humanidade

Ludmilla Moura de Souza Aguiar

José Roberto Moreira

Imagem bíblica que ilustra o encaminhamento dos animais à arca de Noé, por Jan Brueghel, o Velho (1568–1625).

"Os animais lutam pela sobrevivência, e por recursos, para evitar que sejam comidos e para se reproduzirem" (texto do Livro dos animais de AL-JAHIZ, citado por SCHILLER, 2010, p. 191).

"Animals engage in a struggle for existence [and] for resources, to avoid being eaten and to breed."

A escola de Atenas e o essencialismo

O pensamento evolutivo e a filosofia têm uma relação muito estreita e antiga. Só se tornaram matérias diferenciadas na época do surgimento da teoria da evolução, em um contexto darwiniano que se opunha às doutrinas filosóficas (WILKINS, 1997). Ideias a respeito das diferenças e da provável mutação ou evolução dos organismos (no sentido laico dos termos) já estavam em discussão desde antes de Cristo. Na Grécia antiga, alguns dos filósofos da Escola de Atenas já expunham seus pensamentos sobre a evolução de espécies. Segundo proposta de Anaximandro (c. 610–c. 546 a.C.), a Terra inicialmente era fluida e, à medida que foi secando, formou primeiramente humanos na forma de peixe até que pudessem viver em terra (FAIRBANKS, 1898). Anaximandro é considerado o primeiro filósofo a propor a ideia da evolução de organismos. Seu pupilo Xenófanes (c. 576–c. 480 a.C.) foi o primeiro a reconhecer que fósseis eram restos de organismos ancestrais (FAIRBANKS, 1898). Mais tarde, Empédocles (c. 494–c. 430 a.C.) expôs seu pensamento de que todas as estruturas no mundo eram formadas por quatro elementos – fogo, ar, água e terra – que agiam por meio das forças do amor e do ódio (FAIRBANKS, 1898). De acordo com Empédocles, a interação desses elementos levou à formação das plantas, as quais, por meio de eventos de tentativa e erro, deram origem aos animais na Terra. Os textos de Empédocles são considerados os primeiros passos do pensamento teórico evolucionista: sobrevive aquele que está mais bem capacitado e o mundo evoluiu da água por processos naturais (ZAHM, 1896).

Empédocles (c. 494–c. 430 a.C.), filósofo da Grécia antiga, precursor do pensamento teórico evolucionista.

Em oposição a essa ideia, Platão (428–348 a.C.) foi o precursor da teoria das formas, o filósofo do essencialismo – pensamento segundo o qual espécies possuem uma essência (conjunto de qualidades, propriedades e atributos universais daquele grupo de organismos), portanto são imutáveis (REALE; ANTISERI, 2001).

Aristóteles (384–322 a.C.) foi o primeiro historiador natural que teve seu trabalho preservado em detalhes. Sua relação dos seres viventes na scala naturæ (escada da natureza) classificava os organismos de acordo com a complexidade das estruturas e das funções dos seres (ARISTÓTELES, 2001). Ele considerava mais desenvolvidos os organismos com maior vitalidade e habilidade de movimento (ARISTÓTELES, 2001). O que é animado distingue-se do inanimado devido ao movimento e à sensação. A alma movia os seres animados e só ela deveria estar em movimento. Deus estava no topo da escada, os “não seres” encontravam-se abaixo. Os degraus eram divididos em reinos dos seres e reinos dos que vão se tornar seres. O homem é colocado no meio desses dois reinos, abaixo dos demônios e anjos, e acima das plantas, animais e minerais. Aristóteles acreditava que todos os processos naturais tinham uma finalidade, a qual transcendia a realidade material sendo, assim, inalcançável de maneira plena. Essa era a expressão do pensamento humano sobre a disposição dos seres e da natureza. Negava qualquer evolução, pois as formas (ou organismos) eram perfeitas, ocupavam lugares destinados por um ser superior, e qualquer desvio da forma original era um erro, um reflexo com defeito da essência divinamente criada. Alguns séculos após a concepção por Aristóteles dessa configuração da escada da natureza, ela foi reconhecida e adaptada à filosofia judaico-cristã. Muitos ainda mantêm essa visão da natureza!

2.2.jpg

Scala naturæ (escada da natureza) de Aristóteles (384–322 a.C.) para a classificação dos seres.

A natureza das coisas e a teoria maometana da evolução

No século III a.C., surgiu na Grécia o epicurismo – filosofia materialista que contestava o platonismo. O epicurismo atacava a superstição e a intervenção divina e acreditava que o bem vinha dos prazeres comedidos e espirituais. Sociedades epicuristas floresceram na Grécia, ao final do Império Grego, e em Roma, no início da era romana. Tito Lucrécio Caro (99–55 a.C.) foi o mais conhecido proponente romano do epicurismo. Em seu poema épico De rerum natura1, Lucrécio descreveu o desenvolvimento do cosmos, da Terra, dos seres vivos e da sociedade humana por meio de mecanismos naturais. Para ele, tudo no Universo era composto de átomos, que se moviam em um vazio infinito e não eram fruto da criação de divindades (ZAHM, 1896).

Com a queda do Império Romano, as ideias do período conhecido como Antiguidade foram esquecidas na Europa, onde o Cristianismo se espalhava. Mas, no mundo não cristão, essas obras serviram como base para a teoria da evolução maometana, considerada na atualidade bastante avançada para o conhecimento da época (ZIRKLE, 1941). Pensadores muçulmanos já discutiam, desde o século VII, o efeito do ambiente sobre a chance de sobrevivência dos animais (ZIRKLE, 1941; BAYRAKDAR, 1983). Em seu livro Kitāb al-Hayawān2, o sábio al-Jahiz (781–869) foi o primeiro a discutir temas da biologia, como a luta pela sobrevivência e a cadeia alimentar (SCHILLER, 2010, p. 191):

Os animais lutam pela sobrevivência e por recursos, para evitar que sejam comidos e para se reproduzirem. Os fatores ambientais influenciam os organismos a desenvolverem novas características a fim de assegurar sua sobrevivência e, assim, transformarem-se em novas espécies. Os animais que sobrevivem para se reproduzir podem passar suas características bem-sucedidas para seus descendentes.3

Há quem afirme que a única diferença entre a teoria da evolução de Darwin e a de al-Jahiz é teológica (BAYRAKDAR, 1983). O sábio acreditava que a principal causa da evolução em organismos vivos era Deus e que os outros fatores eram secundários.

A primeira escola de teologia islâmica a ter relevância foi a mutazilita, que surgiu graças à tradução das obras filosóficas gregas para o árabe, nos séculos VIII e IX. Escritores árabes como Ibn Miskawayh, Ibn al-Haytham, Abū Rayhān al-Bīrūnī, Nasir al-Din Tusi e Ibn Khaldun argumentavam sobre evolução das espécies (e até mesmo dos minerais), mas não sobre a seleção natural. Eles expressavam seus pensamentos sobre a forma pela qual as espécies se desenvolviam: a matéria deu origem ao vapor e este à água; desta se originaram os minerais, e destes as plantas; estas deram origem aos animais, grandes primatas, e, finalmente, dos animais teriam se originado os humanos (BAYRAKDAR, 1983; ZAHM, 1896; ZIRKLE, 1941). Como alguns dos trabalhos dos filósofos islâmicos foram traduzidos para o latim e, no século XVII, foram publicados na França, Alemanha e Inglaterra, acredita-se que tenham influenciado o pensamento evolucionista dos precursores de Darwin.

Imagem do livro Kitāb al-Hayawān, do sábio Abū Uthman Amr ibn Bahr al-Kinānī al-Basrī, al-Jahiz (781–869), no qual são discutidos temas sobre biologia e ecologia, incluindo a evolução.

Grande cadeia dos seres

Alguns pensadores cristãos buscaram interpretar as escrituras sob um contexto evolutivo. São Gregório de Nissa (330–395) acreditava que Deus teria criado a matéria e a dotado de propriedades fundamentais. O mundo seria resultado do desenvolvimento gradual da matéria, de acordo com seu potencial, e não consequência de simples atos de criação (ZAHM, 1896). Santo Agostinho de Hipona (354–430) ampliou o trabalho de São Gregório. Ele acreditava que Deus não teria criado seres tão desagradáveis como os camundongos e os mosquitos e poderia ter permitido que tais criaturas fossem criadas pela ação de leis naturais.

O contato do Ocidente com o mundo islâmico foi de grande impacto para o pensamento vigente na Europa. Foi a partir desse contato que pensadores cristãos, como São Tomás de Aquino (1225–1274), combinaram a descrição da escada da natureza de Aristóteles com a criação perfeita de todos os seres. Organizaram o mundo inanimado, animado e espiritual em um sistema conectado entre si, conhecido como a grande cadeia dos seres (scala naturæ) (LOVEJOY, 1936). Nesse sistema, muito similar ao sistema proposto por Aristóteles, tudo podia ser classificado de baixo para cima. As graduações eram o inferno, que seria o grau mais baixo, e Deus, que estaria no grau mais alto. O homem era considerado um ser intermediário – nem tanto ao céu nem tanto ao inferno. Nessa versão, entendia-se como pecado o fato de um homem se comportar como animal ou pretender ascender a uma posição superior àquela a ele destinada por Deus (LOVEJOY, 1936). Como o Universo era perfeito, mais perfeita ainda era a escada da natureza. Nenhum organismo podia se mover de uma categoria para outra. Nessa versão cristianizada do universo perfeito de Platão, as espécies eram fixas, plenamente de acordo com o texto bíblico do livro de Gênesis.

Incoerências da Bíblia com relação à realidade natural

Só no século XVIII, o século da razão, é que o homem refutou o teocentrismo medieval, não aceitando mais ideias vagas, cercadas de misticismo, de fantasias sobrenaturais e da metafísica (BRAGA et al., 2005). O movimento iluminista surgiu em defesa dos princípios que norteariam diversas correntes de pensamentos. Era o surgimento da supremacia da razão diante da revelação bíblica. Mas, mesmo assim, resquícios do pensamento medieval, que atribuíam alma ou espírito aos corpos, ainda permaneciam.

A grande cadeia dos seres (scala naturæ), de São Tomás de Aquino (1225–1274), que combina a escada da natureza de Aristóteles com a criação perfeita de todos os seres descrita na Bíblia. A seção inferior representa o inferno e o diabo adorado pelos pecadores. As cinco linhas seguintes são uma representação do paraíso (natureza, animais, água e terra), em completa harmonia. Na linha central, seres humanos buscam pelos céus. Na linha seguinte, anjos esperam para entrar nos céus. No topo, a imagem de Deus, sentado em um trono com seu filho, como os juízes finais. No lado direito, anjos maus caem para o domínio do inferno. O desenho foi publicado, em 1579, no livro Rhetorica Christiana, de Diego Valadés (1533–1582).

As descobertas dos novos continentes na passagem do século XV para o XVI, bem como a constatação da diversidade biológica do planeta e da distribuição geográfica dos organismos, contribuíram para que fossem apontadas incoerências na Bíblia. A visão bíblica de que os habitantes da Terra teriam sido criados por Deus em um lugar – o Jardim do Éden (Paraíso) – passou a ser questionada. Naturalistas passaram a perceber que fósseis das camadas de rochas mais inferiores (portanto mais antigas) apresentavam restos de organismos não similares aos atuais (dinossauros, por exemplo) e os das camadas mais superficiais mostravam mais semelhanças. Ficou claro, então, que muitas espécies haviam sido extintas. Por que Deus teria criado espécies só para virem a se extinguir? Também foi observado um padrão geográfico de agrupamento de espécies. Esse padrão podia ser observado por toda a face da Terra. Por exemplo: os fósseis semelhantes aos tatus e os tatus viventes eram ambos encontrados na América do Sul. Por que após o Dilúvio os tatus teriam ido apenas para a América do Sul? Buscando contornar essa comprovação de incoerência bíblica, naturalistas propuseram sucessivos atos de criação em diversos centros (até seis). Porém, surgiram questionamentos. Seriam os organismos atuais descendentes modificados de suas versões pré-existentes? Seriam essas mudanças explicáveis por causas naturais?

Pensadores como Descartes (1596–1650) têm importância nesse novo olhar sobre os fatos e novas posições foram assumidas, as quais confrontavam o pensamento vigente (BRAGA et al., 2005). Foi nesse período que as bases da ciência moderna foram estabelecidas. Com Galileu Galilei (1564–1642), a natureza passou a ser entendida por meio de seus caracteres e da simbologia matemática (BRAGA et al., 2005, 2007). No século XVIII, o estudo dos gases marcou o início do uso de proporções matemáticas e de um novo método de pesquisa. Foi a época também dos passos iniciais para a descoberta do átomo e elaboração da tabela periódica dos elementos químicos. Teorias passaram a ser formuladas apenas a partir de hipóteses comprovadas experimentalmente. Os filósofos iluministas assumiram esse pensamento, conhecido como newtoniano e, definitivamente, iniciaram a condenação de explicações metafísicas e sobrenaturais na prática filosófico-científica (BRAGA et al., 2005).

Entre 1650 e 1800, o funcionamento do Universo passou a ser associado ao da engrenagem de uma máquina; com isso, a intervenção divina começava a ser dispensada. Essa filosofia é conhecida como mecanicista (BRAGA et al., 2005). Começava-se a perceber, por exemplo, que havia semelhanças entre um homem e uma ave, cujos corpos funcionavam como máquinas, construídos de elementos similares, arranjados de uma maneira semelhante. Nascia a anatomia comparada, que rapidamente se desenvolveu. Essa curiosidade estendeu-se à fisiologia das plantas, à mineralogia e aos animais fósseis encontrados, e representava um considerável avanço na classificação dos seres vivos.

Em 1753, Carl Linnaeus (1707–1778) classificou as plantas a partir de suas características sexuais (LINNAEUS, 1753) (ver Capítulo 5). Em suas publicações, ele apresentou os nomes de todas as plantas e animais conhecidos até aquela época (7.700 espécies de plantas e 4.400 espécies de animais). O trabalho de Linnaeus padronizou e estabeleceu uma nomenclatura científica binomial. Ele deu consistência à classificação e precisão ao método, relacionando cada nome específico com o uso de um nome descritivo que ajudava a identificar a espécie. A taxonomia lineana também agrupou os organismos em conjuntos que partilhavam características físicas ou fisiológicas em categorias hierarquizadas. A adoção desse consistente método por zoólogos e botânicos foi tão indispensável que é usado até os dias de hoje (ver Capítulo 5).

A ancestralidade comum

Na Revolução Industrial, que ocorreu na Inglaterra em meados do século XVIII e espalhou-se pelo mundo a partir do século XIX, a construção de máquinas iniciou um processo tecnológico baseado no conhecimento empírico dos engenheiros e dos teóricos da natureza (BRAGA et al., 2005; 2007). Nesse novo mundo explicado por engrenagens e pela matemática, perguntas não se calavam: “Seriam uma pedra e um animal regidos pelos mesmos princípios?” ou “O que definiria um ser como vivo e não vivo?”. Começaram, então, a surgir as oposições ao mecanicismo. Primeiramente surgiu a teoria vitalista, que propunha a existência de um princípio vital na matéria (BRAGA et al., 2005). Depois a Naturphilosophie, que defendia a ideia de que os estudos a respeito da natureza deveriam considerá-la como um todo orgânico e não separá-la em partes, como fazia o mecanicismo. Propunha, ainda, que a matéria possuiria atividade própria, intrínseca a ela.

A Naturphilosophie, pensada inicialmente por Johann Wolfgang von Goethe (1749–1832) e consagrada por Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775–1854), influenciou sobremaneira os pensadores anglo-saxões, que, daí em diante, desenvolveriam o que hoje conhecemos como darwinismo (ROSE, 1998; BRAGA et al., 2007). Nesse período de novos pensamentos, James Burnett, Lorde Monboddo (1714–1799), lançou a ideia de que homens e primatas teriam origem comum. Em 1796, na publicação Zoonomia; or, the laws of organic life4, de Erasmus Darwin (1731–1802), avô de Darwin, há a sugestão da origem similar dos animais de sangue quente (DARWIN, 1796).

Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707–1788), desafiou o dogma religioso da época agrupando os organismos do mundo natural de acordo com suas semelhanças anatômicas e fisiológicas. Argumentou que os órgãos vestigiais (sem utilidade, como o apêndice humano) eram provas de que os animais deveriam ter passado por mudanças desde a criação. Buffon acreditava em ancestralidade comum entre organismos. Mostrou, também, comprovações para a ocorrência de mudança orgânica em espécies, especulando sobre mecanismos causais, ainda que não tenha apresentado um mecanismo confiável para tais mudanças (DARWIN, 1872). Buffon acreditava na herança de caracteres adquiridos e ficou na dúvida sobre descendência evolutiva. No entanto, acreditava na fixidez das espécies e em uma criação especial.

Anatomia comparada dos animais, que mostrava as semelhanças do esqueleto do homem e das aves. As semelhanças remetem à ancestralidade comum dos organismos. A imagem foi publicada, em 1555, no livro L’histoire de la nature des oyseaux, avec leurs descriptions, & naïfs portraicts retirez du naturel [A história natural das aves], de Pierre Belon (1517–1564).

Em direção contrária à corrente de pesquisas da época, o arcebispo James Ussher (1581–1656) defendeu a ideia de que todos os organismos haviam sido criados na noite de 23 de outubro de 4004 a.C. e, desde então, permaneceram inalterados. Porém, os dogmas religiosos passaram a ser desafiados por muitos cientistas. Astrônomos argumentavam que a Terra não era o centro do Universo. O geólogo escocês James Hutton (1726–1797) afirmou que a Terra era muito antiga, sem nenhum vestígio de seu início e nenhum fim a vista (LYELL, 1830). William Smith (1769–1839), um engenheiro e construtor de canais na Grã Bretanha, provou que estratos geológicos podem existir por grandes extensões e que cada camada estratigráfica tem fauna e flora diferentes. Com isso, ele colocou em uma escala temporal os fósseis que estavam sendo descobertos (BRAGA et al., 2007). A partir disso, os cientistas começavam a questionar o que poderia ter ocorrido com aquelas criaturas. Georges Cuvier (1769–1832), conhecido como pai da paleontologia, apresentou uma nova reflexão sobre a extinção de espécies. Tal ideia ficou conhecida como a teoria do catastrofismo, que advogava a tese de que a extinção e a criação de novas espécies ocorreriam, ao longo do tempo, em decorrência de cataclismos (BRAGA et al., 2007). O Dilúvio teria sido um deles.

Em contraposição ao catastrofismo, surgiu a teoria conhecida como uniformitarismo. Charles Lyell (1797–1875), o pai da geologia, fundamentou a ideia de James Hutton de que as características observadas na Terra resultavam de ações ordinárias das chuvas, ventos, tremores de terra, vulcões, além de outras forças naturais químicas e biológicas que ocorriam ao longo do tempo. Apontava que a idade da Terra era de milhões de anos e que as montanhas, vales, rios e costas marinhas não eram obras do Dilúvio. Com base nesse princípio, foi derrubado o catastrofismo associado aos cataclismos. Lyell questionou, no entanto, a ideia de evolução, pois não via nos fósseis nenhum sinal de continuação de um tipo para outro (BRAGA et al., 2007), acreditando na imutabilidade das espécies. Ainda assim, seu postulado foi, sem dúvida, uma das bases para o desenvolvimento das ideias de Darwin.

A ancestralidade comum dos felinos. O naturalista francês Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707–1788), especulava que as espécies animais descendiam de poucas formas.

Caracteres adquiridos

Os cientistas passaram a buscar explicações para as evidentes mudanças dos organismos ao longo do tempo. O avô de Charles Darwin, Erasmus Darwin, exprimiu a ideia de que todos os organismos viventes partilhavam de um ancestral comum e de que as reações das plantas e animais às variações do ambiente eram responsáveis pelas mudanças adaptativas (DARWIN, 1796). Essas mudanças seriam, então, herdadas pelos descendentes. Suas ideias anteciparam a teoria da herança de caracteres adquiridos, de Lamarck (DARWIN, 1872). Erasmus Darwin sugeriu, ainda, que milhões de anos teriam sido necessários para que tal processo ocorresse.

Na metade do século XVIII, surgiu outro importante personagem de todo esse processo: Jean-Baptiste Lamarck (1744–1829). Depois de trabalhar muitos anos com vários organismos, especialmente invertebrados, ficou convencido da transmutação das espécies (como a evolução era conhecida à época). Em 1809, apresentou pela primeira vez ao público, em seu livro Philosophie zoologique ou exposition des considérations relatives à l’histoire naturelle des animaux5 (LAMARCK, 1984), uma completa teoria da evolução (BARBIERI, 1987), na qual apontava que organismos podem passar para seus descendentes as características que adquiriram durante sua vida. Sua teoria é hoje conhecida como a herança de caracteres adquiridos. Lamarck supunha que novas espécies se originariam por geração espontânea o tempo todo. Segundo ele, cada segmento iria se desenvolvendo do mais primitivo ao mais complexo organismo (BRAGA et al., 2005, 2007).

2.9.jpg

Árvore evolutiva apresentada por Jean-Baptiste Lamarck (1744–1829) em seu livro Philosophie zoologique ou exposition des considérations relatives à l’histoire naturelle des animaux (publicado em 1809). Em sua árvore, Lamarck apresentava os organismos mais complexos na parte de baixo.

Georges Cuvier, por sua vez, desconsiderava a teoria de Lamarck, pois acreditava que as partes individuais de um animal eram tão correlacionadas umas com as outras que seria impossível haver o isolamento e o desenvolvimento de uma parte da anatomia independentemente. Além disso, os registros fósseis mostravam, até aquele momento, um padrão de extinções seguidas por recolonização de espécies, e não uma mudança gradual dos organismos ao longo do tempo. Nessa época, Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772–1844) e Richard Owen (1804–1892) estudavam as homologias encontradas para os membros dos vertebrados, as quais interpretavam como arquétipos na mente divina em uma “contínua transformação ordenada” (ZAHM, 1896). As homologias pareciam apoiar a teoria de Johannes Peter Müller (1801–1858), a qual afirmava que a matéria viva tinha uma “energia organizadora” (vitalismo).

A seleção natural e a herança de caracteres

Muitos cientistas no século XIX já acreditavam na possibilidade de as espécies não serem fixas, ou seja, na ocorrência de mudança das espécies no tempo – a evolução. O problema, na época, consistia em reunir evidências que comprovassem sua existência e encontrar mecanismos que explicassem as mudanças. O livro Vestiges of the natural history of creation6, publicado em 1844, é um bom exemplo de publicação daquela época que apresentava a evolução. A obra, de autoria de Robert Chambers (1802–1871), foi publicada anonimamente (CHAMBERS, 1853). O livro sugeria que todo organismo vivente teria se desenvolvido a partir de formas primárias, além de explicar a origem da vida por geração espontânea e mostrar uma progressão evolutiva de organismos simples até os mais complexos, chegando até o homem. Na época de Darwin, além de já ser aventada a possibilidade da mudança das espécies ao longo do tempo, os fósseis eram considerados evidências de uma vida passada, e a ocorrência de extinção era plenamente aceita. Essa era a situação do conhecimento científico quando Darwin começou suas pesquisas.

Erasmus Darwin (1731–1802), médico e naturalista inglês, avô de Charles Darwin. Em seus livros Zoonomia; or, the laws of organic life (publicado em 1794) e The temple of nature [O templo da natureza] (publicado em 1802), Erasmus Darwin apresentou pensamentos evolutivos semelhantes à herança dos caracteres adquiridos, posteriormente postulada por Lamarck.

Só faltava, portanto, mostrar evidências da evolução e descrever o mecanismo pelo qual ela ocorria. Em 1858, Charles Robert Darwin (1809–1882) e Alfred Russel Wallace (1823–1913) publicaram uma nova teoria da evolução na qual a especiação ocorria por seleção natural. Ambos chegaram à teoria por meio da leitura do livro An essay on the principle of population7, de Thomas Malthus (1766–1834), publicado em 1803, que argumentava que o crescimento ilimitado da população humana levaria à fome. Com base nisso, Darwin e Wallace passaram a argumentar que as variações favoráveis existentes em uma população tenderiam a ser preservadas ao longo do tempo. “A luta pela existência” levaria, com o passar do tempo, ao surgimento de novas espécies por seleção natural (GHISELIN, 2008). Em seu livro On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life8, publicado em 1859, Darwin ousou ainda mais: elaborou uma árvore da vida baseada em uma ascendência comum. Em seu trabalho, sintetizou as evidências coletadas no estudo da criação de animais, na biogeografia, na geologia, na morfologia e na embriologia. Darwin, porém, não tinha noção de como a herança funcionava. Chegou a admitir que talvez os caracteres adquiridos fossem hereditários, mas que fossem selecionados naturalmente – a esse mecanismo chamou de pangênese (ver Capítulo 3).

Jean Léopold Nicolas Frédéric Cuvier, conhecido como Georges Cuvier (1769–1832), paleontólogo e anatomista francês, criador da anatomia comparada e da paleontologia como ciência.

Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck

Estátua de Jean-Baptiste Lamarck (1744–1829), localizada na entrada do Jardim das Plantas, em Paris, França. O Museu Nacional de História Natural aparece ao fundo. Lamarck foi o naturalista francês que propôs a teoria da herança de caracteres adquiridos.

Foto: José Roberto Moreira

Jean-Baptiste Lamarck nasceu em uma vila no norte da França – Bazentin-le-Petit – em 1º de agosto de 1744. Seu pai era de uma família de militares da pequena aristocracia francesa e ele era o mais jovem de 11 filhos. Lamarck entrou para o exército em 1761, mas uma doença forçou-o a abandonar a carreira militar. Estudou botânica e medicina, já que as duas ciências estavam ligadas à época (BRAGA et al., 2005).

Após a Revolução Francesa, Lamarck foi indicado para o posto de professor do Museu Nacional de História Natural, em Paris, responsável pela seção de história natural dos “insetos e minhocas” (como na época eram chamados todos os invertebrados). Essa era a última das opções de emprego disponível no museu. Foi Lamarck quem cunhou o termo “invertebrados”, foi o primeiro a separar Crustacea, Arachnida e Annelida da classe Insecta, e realizou importante trabalho de classificação dos moluscos (BRAGA et al., 2005). Seus trabalhos taxonômicos, porém, nunca receberam o merecido prestígio.

Lamarck é lembrado hoje principalmente por sua desacreditada teoria da herança de caracteres adquiridos . Sua teoria baseou-se na ideia de que indivíduos adaptar-se-iam ao ambiente durante suas vidas e transmitiriam aos seus descendentes esses caracteres adquiridos por essas adaptações. Os descendentes adaptar-se-iam a partir de onde seus genitores encontravam-se permitindo que a evolução acontecesse. Segundo Lamarck, para se adaptarem ao ambiente os indivíduos desenvolveriam capacidades específicas pelo uso; no entanto, perderiam outras pelo desuso. Ele acreditava que a vida teria surgido sob a forma de microrganismos, por geração espontânea, e que a complexidade dos organismos teria aumentado ao longo do tempo, visto que haveria neles uma tendência intrínseca que os impelia para níveis de organização cada vez mais complexos (BARBIERI, 1987). Não acreditava em extinção.

Lamarck teve de lutar constantemente pelo reconhecimento do seu trabalho e contra a pobreza. Ao final de sua vida, passou a depender dos cuidados de suas filhas. Faleceu em 28 de dezembro de 1829. Foi enterrado como homem pobre, em vala comum, e hoje não se sabe onde se encontram seus restos mortais (BRAGA et al., 2005). Embora tenha sido provado que sua teoria estivesse equivocada, suas ideias foram importantes na história do pensamento evolutivo e, até o princípio do século XX, foram consideradas mais importantes que a seleção natural.

Exemplo da teoria da herança de caracteres adquiridos, na qual indivíduos aumentariam capacidades específicas exercitando-as, e esses caracteres seriam transmitidos aos seus descendentes.

Wallace e vários outros estudiosos – incluindo o botânico Joseph Dalton Hooker (1817–1911), o entomologista Henry Walter Bates (1825–1892), o naturalista Fritz Müller (1821–1897), e o morfologista Thomas Henry Huxley (1825–1895) – tornaram-se grandes admiradores e colaboradores de Darwin, e disseminaram as ideias da evolução ardorosamente. Huxley tornou-se o maior defensor de Darwin e da teoria da evolução, tanto que ficou conhecido como o “buldogue de Darwin”.

Autores da teoria da evolução por seleção natural, que foi lida ao público da Sociedade Linneana de Londres em 1º de julho de 1858: (A) Charles Robert Darwin (1809–1882); (B) Alfred Russel Wallace (1823–1913).

Porém, o mecanismo de seleção natural não teve a mesma aceitação que a proposta de evolução dos seres vivos (BRAGA et al., 2007). Existiam argumentações sobre fatores que alguns acreditavam que também poderiam conduzir à evolução, tais como: a herança de caracteres adquiridos (lamarckismo), a tendência à mudança inata (ortogênese) ou uma inesperada e ampla onda de mutação (saltacionismo ou equilíbrio pontuado) evidenciada no registro fóssil. Darwin não tinha nenhum conhecimento de genética, mas sabia que a variação existente nos seres vivos poderia ser herdada por ação da seleção sobre uma população variável. Na realidade, nessa mesma época, sem o conhecimento de Darwin, haviam sido descobertos os mecanismos da hereditariedade que ele tanto precisava conhecer – o monge austríaco Gregor Mendel (1822–1884) publicara um artigo em 1866, intitulado Experiments in plant hybridization9 (RIDLEY, 2004).

Mendel é considerado o pai da genética. Ele usou espécimes de ervilhas para estudar a hereditariedade de caracteres. Por meio do acompanhamento de caracteres específicos (como as cores e formas das vagens), Mendel pôde identificar dois princípios de hereditariedade que se aplicavam na passagem desses caracteres aos descendentes (RIDLEY, 2004). Os princípios de Mendel são conhecidos como lei da segregação dos fatores e lei da segregação independente (ver Capítulo 3).

Sintetizando a seleção natural e a genética

No final do século XIX, a seleção natural era rejeitada pelos cientistas. Esse período é conhecido como “o eclipse do darwinismo”. Na época, acreditava-se que a herança de caracteres era feita por uma amalgamação de genes, como na mistura de duas tintas. Esse mecanismo homogeneizaria todos os indivíduos e não haveria variação na qual a seleção natural pudesse agir. Em 1900, quando a obra de Gregor Mendel foi redescoberta, muitos esperavam que a genética resolvesse as controvérsias existentes sobre evolução. Porém, o tipo de mudança que, conforme foi interpretado, agiria sobre organismos consistiu em mutações descontínuas e não graduais, necessárias para serem herdadas na seleção natural (RIDLEY, 2004). Por essa razão, os geneticistas mendelianos Hugo Marie de Vries (1848–1935), William Bateson (1861–1926) e Wilhelm Johannsen (1857–1927) rejeitavam a seleção natural. Essa interpretação favorecia o reconhecimento do saltacionismo, que dominou a genética evolucionista até 1915.

Gregor Johann Mendel e suas ervilhas

Gregor Johann Mendel (1822–1884), cientista e frade tcheco, criador da genética moderna. Darwin nunca leu o trabalho de Mendel, que ficou desconhecido até o princípio do século XX.

Johann Mendel, único filho de um camponês austríaco, nasceu em 20 de julho de 1822, em Heizendorf (hoje Hynčice, República Tcheca). Em 1843, iniciou seus estudos no Monastério de São Tomás da Ordem Agostiniana, em Brno, República Tcheca. Posteriormente, estudou matemática e biologia na Universidade de Viena, Áustria. O prenome Gregor foi acrescentado ao seu nome após o celibato (DUNN, 1965).

Mendel registrou adequadamente os princípios tradicionais que se tornaram a base da genética moderna. Para realizar seus experimentos, utilizou ervilhas (Pisum sativum), que possuem flores que permitem tanto a autopolinização quanto a polinização cruzada. Mendel realizou experimentos por oito anos com 34 variedades de ervilhas. Testou sete caracteres (altura do pecíolo, cor e forma da semente, cor e posição da flor e cor e forma da vagem), que se apresentavam em duas formas bem distintas. Por meio de métodos estatísticos, Mendel pôde demonstrar que esses caracteres eram passados de cada genitor para seus descendentes através da herança (DUNN, 1965).

Mendel apresentou seus resultados em duas reuniões da Sociedade de História Natural de Brno, em 1865. Seu artigo foi publicado em 1866 nos Anais da Sociedade, e teve pouco impacto. É possível que a audiência não tenha entendido seu experimento. Tanto a abordagem quanto a natureza de seus experimentos foram completamente não convencionais para a época. Há quem argumente que o trabalho de Mendel foi, na realidade, negligenciado porque outras opiniões sobre hereditariedade prevaleciam na época (KESSEL, 2002). No entanto, seus resultados deram origem a dois princípios de herança genética, que são conhecidos hoje como as leis de Mendel (DUNN, 1965).

Mendel era uma pessoa tímida e aparentemente insegura. Depois da pouca repercussão de seu experimento, ele gradativamente abandonou suas pesquisas e passou a se envolver mais em cargos administrativos. Em 1868, foi nomeado abade de seu mosteiro. Faleceu em 6 de janeiro de 1884, em Brno (DUNN, 1965), sem ter consciência da importância do seu trabalho.

Em 1936, o matemático inglês Ronald Fisher levantou a polêmica sobre um possível ajuste que Mendel possa ter realizado em seus dados. Argumentou que as taxas de segregação que Mendel encontrou foram maiores do que os princípios de variação estatísticos poderiam supor. Porém, os argumentos foram contestados por alguns trabalhos, tanto por repetições dos experimentos de Mendel quanto por simulações matemáticas (DOUGLAS; NOVITSKI, 1977; HARTL; OREL, 1992).

Mendel realizou experimentos de cruzamentos com variedades de ervilhas por meio de testes que acompanharam a herança de diferentes caracteres, como cor e forma da semente, da vagem e cor e posição da flor. Seus experimentos foram realizados nos jardins da Abadia de São Tomás, em Brno, República Tcheca.

Foto: Petr Paprtala

No final do século XIX, o neo-lamarckismo, que pregava a herança dos caracteres adquiridos, era mais apoiado do que a teoria darwiniana de evolução por seleção natural, que era criticada por sua “atuação aleatória”. Críticos do neo-lamarckismo apontavam que não existiam comprovações para sua aceitação. Em 1883, Friedrich Leopold August Weismann (1834–1914) refutou a herança de caracteres adquiridos. Em um experimento, ele cortou a cauda de várias gerações de ratos, sem que nenhuma geração tenha nascido desprovida de cauda (RIDLEY, 2004). Weismann derrubou a teoria de Lamarck e preparou o caminho para a síntese da genética mendeliana com a seleção natural. Mesmo assim, o lamarckismo continuou bastante popular entre os cientistas até o início do século XX.

Por volta de 1910, uma nova geração de geneticistas começou a questionar os primeiros mendelianos (RIDLEY, 2004), por meio dos resultados observados em estudos com moscas-de-fruta (Drosophila spp.). Nesses experimentos, descobriu-se que a maioria das mutações era pequena o suficiente para permitir mudanças graduais em populações. Não eram necessários saltos repentinos! Entre 1915 e 1932, os geneticistas populacionais Ronald Aylmer Fisher (1890–1962), Sewall Green Wright (1889–1988) e John Burdon Sanderson Haldane (1892–1964) mostraram que o mecanismo de seleção natural podia operar em fatores mendelianos. Eles descobriram que caracteres que variam continuamente têm base genética, ou seja, são a combinação de efeitos de vários loci cromossômicos (ver Capítulo 3). Dessa maneira, os genes com vantagens seletivas podiam ser incorporados lentamente ao genótipo de populações (RIDLEY, 2004). Com isso, a evolução passou a ser definida como a mudança nas frequências gênicas em populações.

Geneticistas populacionais precursores da teoria da síntese evolutiva, que uniu o conhecimento evolutivo de Darwin às leis de Mendel: (A) Ronald Aylmer Fisher (1890–1962); (B) Sewall Green Wright (1889–1988); (C) John Burdon Sanderson Haldane (1892–1964).

Foto: cortesia dos arquivos da Universidade de Wisconsin Madison

Recepção ao darwinismo e à evolução no Brasil

Por tratar-se de um tema polêmico, esperava-se que a literatura de Darwin fosse combustível para discussões acaloradas em um Brasil católico (RODRIGUES-CARVALHO, 2004). O Brasil do século XIX estava acostumado com as literaturas francesa e alemã. Muito se falava em Buffon, Haeckel e Spencer; mas pouquíssimo se comentava a respeito de Darwin. A tradução e a publicação da obra principal de Darwin, A origem das espécies, só veio a acontecer em 1982 (PENNA, 2006)!

A historiografia das ciências considera a década de 1870 como o marco da recepção do darwinismo no Brasil (PENNA, 2006). Domingos Guedes Cabral (1852–1883), seguindo a filosofia positivista, redigiu um dos primeiros trabalhos brasileiros que expunha e defendia a teoria da evolução. Seu trabalho tentou mostrar que o cérebro seria o único lugar onde a alma humana poderia morar. Com base nisso, escreveu sua tese de doutoramento intitulada Funcções do cerebro (ALMEIDA; EL-HANIA, 2007).

Entre 1875 e 1880, o médico Augusto de Miranda Azevedo buscou difundir o darwinismo no Rio de Janeiro, então capital do Império, por meio de preleções públicas nas chamadas conferências populares da Glória. Essas conferências sobre o darwinismo suscitaram um debate na imprensa carioca, com manifestações de apoio e repúdio (CARULA, 2009). A celeuma gerou uma interpretação racista da teoria da evolução, na qual os brancos eram muitas vezes classificados como superiores aos negros.

O mais importante darwinista brasileiro durante o século XIX foi Fritz Müller (1821–1897), um naturalista alemão exilado no Brasil. Por ter apoiado a Revolução Prussiana de 1848, Müller teve que fugir para o Brasil em 1852. Foi ele quem corroborou a perspectiva darwiniana, com dados concretos e substanciais, escrevendo o livro Für Darwin, em 1864 (DARWIN, 1887), que foi publicado por Darwin na Inglaterra sob o título Facts and arguments for Darwin1. Suas ideias foram utilizadas por Ernest Haeckel para a formulação da lei biogenética fundamental. Fritz Müller também é conhecido por ter descrito um tipo de mimetismo em borboletas, hoje conhecido por “mimetismo mülleriano” (RIDLEY, 2004).

Johannes Friedrich (Fritz) Müller (1821–1897), biólogo evolucionista alemão, que, quando estava exilado no Brasil (em Santa Catarina), correspondia-se com Darwin. Escreveu um livro em apologia a ele. Darwin financiou a tradução para o inglês e o publicou na Inglaterra. Müller ficou conhecido na ciência por descrever um tipo de mimetismo de borboletas, que é hoje conhecido como mimetismo mülleriano.

1 Fatos e argumentos a favor de Darwin.

Outro problema a ser resolvido consistia na identificação dos mecanismos pelos quais as espécies se subdividiam. Embora em 1920 os naturalistas-taxonomistas já discorressem sobre a especiação (que acontece quando uma população se torna reprodutivamente separada em duas), foi só em 1937, com a publicação do livro Genetics and the origin of species10, de Theodosius Dobzhansky (1900–1975), que o processo de aparecimento de novas espécies foi geneticamente compreendido. A reunião da seleção natural com a genética mendeliana ocorreu com a publicação de diversos outros trabalhos importantes: Systematics and the origin of species from the viewpoint of a zoologist11, publicado em 1942, do biólogo Ernst Mayr (1904–2005); Evolution: the modern synthesis12, publicado em 1942, de Julian Huxley (1887–1975); Tempo and mode in evolution13, publicado em 1944, de George Gaylord Simpson (1902–1984); e Variation and evolution in plants14, publicado em 1947, de George Ledyard Stebbins (1906–2000). Essa composição de pensamentos, conhecida por teoria da síntese evolutiva, deu origem ao enfrentamento dos verdadeiros darwinistas contra três teorias não darwinianas: lamarckismo, saltacionismo e ortogênese (MAYR, 2001). Imediatamente após a síntese, veio a revolução molecular.

Theodosius Grygorovych Dobzhansky (1900–1975), geneticista e evolucionista ucraniano, importante figura no desenvolvimento da teoria da síntese evolutiva. Dobzhansky desenvolveu suas pesquisas nos EUA.

Foto: cortesia da família de Crodowaldo Pavan

A dupla hélice e a teoria neutra

Desde Darwin, os cientistas buscavam descobrir onde se localizavam as instruções genéticas passadas entre gerações. As descobertas foram sendo feitas passo a passo. Em 1869, o bioquímico alemão Johannes Friedrich Miescher (1844–1895) estava determinando os componentes químicos do núcleo celular por meio da avaliação de glóbulos brancos e descobriu uma substância que chamou de nucleína. Em 1880, outro pesquisador alemão – Albrecht Kossel (1853–1927) – demonstrou que a nucleína continha bases nitrogenadas em sua estrutura. Nove anos depois, Richard Altmann (1852–1900), que tinha sido aluno de Miescher, obteve a nucleína com alto grau de pureza, comprovando sua natureza ácida e dando-lhe, então, o nome de ácido nucleico. Em 1944, Oswald Avery (1877–1955) mostrou que o material genético era constituído de ácidos nucleicos. Finalmente, em 1953, nove anos depois da descoberta de que o ácido desoxirribonucleico (deoxyribonucleic acid – DNA) era o material hereditário, James Watson (1928–) e Francis Crick (1916–2004) demonstraram a constituição da estrutura do DNA em dupla hélice e abriram uma nova dimensão para a análise genética (FUTUYMA, 1986).

James Watson (1928–), cientista americano que, junto com o biólogo molecular inglês Francis Harry Compton Crick (1916–2004), foi o primeiro a descrever a estrutura de dupla hélice do DNA.

Foto: James D. Watson Genome Image, Laboratório Cold Spring Harbor

O DNA contém a informação genética que permite a todos os organismos viventes crescerem, funcionarem e se reproduzirem. Sua descoberta foi a mais importante pelo impacto que teve no entendimento a respeito da evolução. Hoje, o DNA encontra-se no centro da nossa compreensão sobre a evolução, pois é o local onde ela ocorre. Mudanças no DNA resultam na expressão de novos caracteres nos organismos (ver Capítulo 3).

Os primeiros estudos moleculares sugeriram que a maioria das mutações tem origem neutra (não são benéficas nem prejudiciais). Essa sugestão gerou intenso debate na comunidade científica entre aqueles que defendiam a seleção natural e aqueles que então passaram a defender a teoria neutra da evolução molecular. Segundo essa teoria, proposta pelo biólogo japonês Motoo Kimura (1924–1994), a maior parte da variabilidade genética ocorre por mutações e deriva genética (ver Capítulo 3). A ação da deriva genética seria de maior importância sobre pequenas populações do que a ação da seleção natural (NEI, 2005).

A evolução da sociabilidade

Na teoria da síntese evolutiva não havia explicações convincentes sobre as condutas denominadas altruístas. A seleção natural maximiza a aptidão do indivíduo, o qual será provavelmente eliminado por seleção natural caso possua a tendência de renunciar sua aptidão em favor de outro (FONSECA, 2006; HAMILTON, 1964; TRIVERS, 1972). Entretanto, alguns organismos que vivem em colônias, como as formigas, os cupins e as abelhas, atuam altruisticamente. Dois ilustres pesquisadores – William Hamilton e Edward Wilson – iniciaram a discussão sobre uma das maiores controvérsias científicas do final do século XX: a evolução da sociabilidade.

William (Bill) Donald Hamilton (1936–2000), biólogo e evolucionista britânico, considerado o mais importante evolucionista após Darwin, precursor da sociobiologia. Hamilton desenvolveu parte dos seus estudos de campo na Amazônia brasileira. Na foto, ele se encontrava na Reserva Sustentável de Amanã, Amazonas.

Foto: cortesia da família de Márcio Ayres

William D. Hamilton (1936–2000) procurou explicar esses paradoxos. Ele formulou o conceito de aptidão inclusiva, do inglês inclusive fitness (HAMILTON, 1964), e desenvolveu uma teoria de evolução por seleção natural que não age individualmente: a seleção de parentesco. Trata-se da avaliação do êxito reprodutivo de um indivíduo, medido pela proporção de seus genes no total de genes da próxima geração (FONSECA, 2006; HAMILTON, 1964; TRIVERS, 1972). Com uma simples fórmula matemática, Hamilton buscou explicar a evolução do cuidado parental e de outros comportamentos altruísticos como a sociabilidade das abelhas. O pesquisador desenvolveu seu trabalho de pesquisa no Brasil, com abelhas na Amazônia. A regra desenvolvida por ele (conhecida hoje por “regra de Hamilton”) afirma que uma ação altruística dispendiosa (como buscar alimento para outro indivíduo) deve ser realizada se o custo da ação, no que se refere ao valor adaptativo para o indivíduo, for menor que o benefício em valor adaptativo gerado em indivíduos aparentados, o qual depende da sua relação de parentesco para com eles.

O termo sociobiologia foi popularizado por Edward Osborne Wilson (1929–), um estudioso das formigas e, em particular, do uso de feromônios para a comunicação animal. Ele também introduziu o termo biodiversidade ao público em geral. Seu livro Sociobiology: the new synthesis15, lançado em 1975, mostra que o comportamento animal, e por extensão o humano, pode ser estudado por meio de uma abordagem evolutiva (KREBS; DAVIES, 1993).

Desde meados do século XIX, uma enorme quantidade de pesquisas científicas converteu as ideias iniciais de Darwin e Wallace sobre a evolução em uma teoria amplamente apoiada por evidências. Hoje, a evolução é um campo de pesquisa extremamente ativo, com uma enorme abundância de novas descobertas que continuamente aumentam nossa compreensão de como a evolução acontece. As evidências encontram-se nos achados da paleontologia, embriologia, biologia molecular, anatomia comparativa e biogeografia. No entanto, estamos ainda muito distantes de compreender amplamente os mecanismos da evolução. Pesquisas recentes sobre evolução molecular e especiação, porém, têm evidenciado como correta a visão Darwin-Wallace de que a seleção natural impulsiona em grande parte a evolução. Também têm mostrado que, com frequência, a seleção natural leva à separação de espécies.

Referências

ALMEIDA, R. J. T.; EL-HANIA, C. N. A medicina como “philosophia social”: Domingos Guedes Cabral e a tese inaugural “Funcções do Cerebro” (1875). Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 6-33, 2007.

ARISTÓTELES. Da alma (De anima). Lisboa: Gomes, 2001.

BARBIERI, M. Teoria semântica da evolução. Lisboa: Fragmentos, 1987.

BAYRAKDAR, M. Al-Jahiz and the rise of biological evolutionism. Islamic Quarterly, London, v. 27, n. 3, p. 307-315, 1983. Traduzido do original em árabe.

BRAGA, M.; GUERRA, A.; REIS, J. C. Das luzes ao sonho do doutor Frankstein: Séc. XVIII. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 157 p. (Breve História da Ciência Moderna, 3).

BRAGA, M.; GUERRA, A.; REIS, J. C. A belle-epoque da Ciência: Séc. XIX. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 188 p. (Breve História da Ciência Moderna, 4).

CARULA, K. A Tribuna da Ciência: As conferências populares da Gloria e as discussões do darwinismo na imprensa carioca: 1873-1880. São Paulo: Annablume, 2009.

CHAMBERS, R. Vestiges of the natural history of creation. London: John Churchill, 1853.

DARWIN, C. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray, 1859.

DARWIN, C. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. 6. ed. London: John Murray, 1872.

DARWIN, E. Zoonomia: or, the laws of organic life. London: J. Johnson, 1796. v. 1.

DARWIN, F. The Autobiography of Charles Darwin. London: John Murray, 1887.

DOUGLAS, L.; NOVITSKI, E. What chance did Mendel’s experiments give him of noticing linkage? Heredity, London, v. 38, n. 2, p. 253-257, 1977

DUNN, L. C. Mendel, his work and his place in history. Proceedings of the American Philosophical Society, Philadelphia, v. 109, n. 4, p. 189-198, 1965.

FAIRBANKS, A. The first philosophers of Greece. New York: Charles Scribner’s, 1898.

FONSECA, A. T. Resenha: Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. Varia historia, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 574-576, 2006.

FUTUYMA, D. J. Evolutionary biology. 2. ed. Sunderland: Sinauer, 1986.

GHISELIN, M. T. Charles Darwin and Alfred Russel Wallace: on the tendency of species to form varieties, and on the perpetuation of varieties and species by natural means of selection, 1858. San Francisco: California Academy of Sciences, 2008. 28 p.

HAMILTON, W. D. The genetical evolution of Social Behavior. Journal of Theoretical Biology, London, v. 7, p. 1-52, 1964.

HARTL, D. L.; OREL, V. What did Gregor Mendel think he discovered? Genetics, Austin, v. 131, p. 245-253, 1992.

KESSEL, R. Mendel: forgotten or ignored? Journal of the Royal Society of Medicine, London, v. 95, n. 9, p. 474, 2002

KREBS, J. R.; DAVIES, N. B. An introduction to behavioural ecology. 3 ed. Oxford: Blackwell, 1993.

LAMARCK, J. B. Philosophie zoologique, ou exposition des considérations relatives à l’histoire naturelle des animaux. Chicago: Chicago University Press, 1984.

LINNAEUS, C. Species plantarum. Holmiae: Laurentius Salvius, 1753.

LOVEJOY, A. The great chain of being: a study of the history of an idea. Cambridge: Harvard University Press, 1936. 382 p.

LYELL, C. Principles of geology, being an attempt to explain the former changes of the Earth’s surface, by reference to causes now in operation. London: John Murray. 1830. v. 1.

MAYR, E. What evolution is. New York: Springer, 2001.

NEI, M. Selectionism and neutralism in molecular evolution. Molecular Biology and Evolution, Chicago, v. 22, n. 12, p. 2318-2342, 2005.

PENNA, J. O. M. Polemos: uma análise crítica do darwinismo. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 2006.

REALE, G.; ANTISERI, D. História del pensamiento filosófico y científico. Barcelona: Herder & Herder, 2001. v. 1.

RIDLEY, M. Evolution. 3 ed. Oxford: Blackwell, 2004

RODRIGUES-CARVALHO, C. A recepção do darwinismo no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1769-1770, 2004.

ROSE, M. R. O espectro de Darwin: a teoria da evolução e suas implicações no mundo moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

SCHILLER, J. Genome Mapping: to Determine Disease Susceptibility. Seattle: CreateSpace Independent Publishing Platform, 2010

TRIVERS, R. L. The evolution of reciprocal altruism. Quarterly Review of Biology, New York, v. 46, n. 1, p. 35-56, 1972.

WILKINS, J. Evolution and phylosophy: an introduction. The Talking Origins Archieve, 1997. Disponível em: <http://www.talkorigins.org/faqs/evolphil.html>. Acesso em: 15 out. 2008.

ZAHM, J. A. Evolution and dogma. Chicago: McBride, 1896.

ZIRKLE, C. Natural selection before the origin of species. Proceedings of the American Philosophical Society, Philadelphia, v. 84, n. 1, p. 71-123, 1941.