Capítulo 1
José Roberto Moreira
Charles Robert Darwin (1809–1882) ao final de sua vida.
"Quando deixei a escola, eu não estava nem adiantado nem atrasado para a minha idade; e acredito que era considerado por todos os meus professores e pelo meu pai como um rapaz bastante comum, mas intelectualmente abaixo da média" (CHARLES DARWIN, em sua autobiografia de 1876, publicada por BARLOW, 1958, p. 28).
"When I left the school I was for my age neither high nor low in it; and I believe that I was considered by all my masters and by my Father as a very ordinary boy, rather below the common standard in intellect."
Há pouco mais de 150 anos, no dia 1o de julho de 1858, a publicação de um artigo científico fazia ruir de vez a concepção do homem como centro do Universo. De autoria de Charles Robert Darwin e Alfred Russel Wallace (DARWIN; WALLACE, 1858) e publicado pela Sociedade Linneana de Londres, o artigo intitulado On the tendency of species to form varieties and on the perpetuation of varieties and species by natural means of selection1 apresentou à comunidade científica as raízes da teoria da evolução por seleção natural. A publicação, adicionada na última hora ao programa da referida sociedade, foi apresentada ao final da reunião, razão pela qual poucos da audiência puderam perceber a importância da mensagem ali apresentada e de suas consequências. Sem qualquer alarde e de maneira despercebida, a humanidade acabara de ser destituída do “berço da Criação”. Em razão disso, em seu discurso de fim de ano, Thomas Bell – presidente da sociedade – declarou: “[...] o ano que passou realmente não foi marcado por nenhuma daquelas impressionantes descobertas que, digamos, de imediato revolucionam o Departamento de Ciência do qual fazem parte”2 (KEYNES, 2001, p. 318).
Esse artigo levou Darwin a publicar, em 24 de novembro de 1859, o influente livro On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life3 (DARWIN, 1859), hoje conhecido apenas por A origem das espécies. Sua importância foi imediata para a comunidade científica, pelo fato de ter desvinculado todas as ciências do cabresto místico. Transformou a biologia em uma disciplina científica, ao fazer que deixasse de ser um mero exercício de catalogação. Diferentemente do artigo publicado em 1958, o livro de Darwin teve impacto que repercutiu além da comunidade científica e mudou a maneira pela qual a sociedade via o mundo à sua volta, estimulando a criação de movimentos culturais controversos, influenciando a cultura, as artes, a literatura, o comportamento e muitos outros aspectos da vida humana. Como disse o paleontólogo Stephen Jay Gould (1998, p. 173), foi “[...] a maior revolução biológica na história do pensamento humano”4. Pode-se dizer, ainda, que essa revolução não terminou, porque suas ideias e consequências ainda não foram digeridas por todas as camadas da sociedade humana.
A publicação conjunta nos anais da reunião da Sociedade Linneana de Londres instituiu Darwin e Wallace como coautores da teoria da evolução por seleção natural. Ela é, sem dúvida, a mais respeitada e, ao mesmo tempo, a mais ultrajada concepção já formada na história humana. As circunstâncias que levaram à publicação do artigo e do livro de Darwin têm um caráter histórico importante e merecem ser conhecidas. De igual modo, os impactos gerados pela apresentação da teoria ao grande público, bem como as reações que perduram até hoje, valem ser revistos e ampliados.
Charles Robert Darwin nasceu em uma família de médicos, investidores e empresários da pequena nobreza fundiária inglesa (DESMOND; MOORE, 1992). Sua condição financeira era tal que, caso fosse de seu interesse, não precisaria trabalhar. Seu pai, Robert Darwin, era um médico e investidor de sucesso. Sua mãe, Susannah Wedgwood, vinha de uma família de empresários de indústrias de louças finas. Darwin nasceu em Shrewsbury, no condado de Shropshire, Inglaterra, em 12 de fevereiro de 1809, na residência de sua família (the Mount).
Robert Waring Darwin (1766–1848), médico e investidor inglês, pai de Charles Robert Darwin e filho do também médico Erasmus Darwin.
Fonte: cortesia da família Mostyn Owen
The Mount, local de nascimento de Darwin (12 de fevereiro de 1809) e residência de sua família em Shrewsbury, condado de Shropshire, na Inglaterra. A casa onde Darwin nasceu é, na atualidade, um escritório do governo para cobrança de impostos.
Foto: José Roberto Moreira
Durante sua infância, Darwin frequentava a igreja unitarista da família de sua mãe. Por sua vez, seu pai, ainda que anglicano, era um livre-pensador (DARWIN, 1887a), assim como seu avô paterno, Erasmus Darwin, um conhecido filósofo natural inglês, que, em seu longo poema The temple of nature5, apresentou ideias consideradas precursoras da teoria da evolução. O poema traça a progressão da vida desde os microrganismos até a sociedade civilizada, em uma visão lamarckista da evolução, segundo a qual os genitores transmitem aos descendentes as adaptações adquiridas durante suas vidas (DARWIN, 1803).
A morte da mãe, quando tinha apenas 8 anos de idade, fez que Darwin passasse a ser cuidado por suas irmãs mais velhas (era o quinto de seis filhos). Em sua infância, gostava de colecionar insetos, conchas, ovos de pássaros, pedras e minerais. O pai estimulava-o em tais atividades, especialmente durante as férias no País de Gales (DARWIN, 1887a). Aos 9 anos, Darwin passou a estudar em um internato, em Shrewsbury, onde um dos professores considerou-o um estudante desatento. Na adolescência, o interesse do menino Darwin pelos insetos transformou-se em impulso pela caça. Seu pai, frustrado por ver o filho buscando assuntos considerados irrelevantes, disse-lhe um dia: “Você não se importa com nada que não seja caça, cães e captura de ratos, e será uma desgraça para si e para a sua família”6 (DESMOND; MOORE, 1992). Tentando envolver Darwin em atividades mais “nobres”, o pai o tirou da escola mais cedo (aos 15 anos) para que o filho o acompanhasse em seu trabalho como médico (DESMOND; MOORE, 1992).
Em outubro de 1825, aos 16 anos, Darwin foi estudar medicina na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Rapidamente percebeu que era sensível à visão de sangue, achava as aulas de medicina tolas e entediantes; e as cirurgias, brutais. Entretinha-se lendo romances emprestados da biblioteca e seus livros de história natural, entre eles o livro Zoonomia; or the laws of organic life7, de autoria de seu avô Erasmus Darwin. Nesse período, também aprendeu taxidermia com um ex-escravo das Guianas. Nos fins de semana e durante as férias, fazia coleta de animais e anotava tudo aquilo que observava sobre eles e sobre história natural (DARWIN, 1887a).
Na Universidade de Edimburgo, Darwin tornou-se membro de uma sociedade estudantil de naturalistas (Sociedade Pliniana) e pupilo de Robert Edmund Grant, um anatomista de pensamentos lamarckistas. Grant propiciou a Darwin o primeiro contato com ideias novas relacionadas à biologia, como homologia e origem comum das espécies. As aulas sobre geologia estratigráfica, ministradas pelo professor Robert Jameson, permitiram a Darwin o acesso ao Museu da Universidade de Edimburgo, que, à época, era um dos maiores do mundo. Na Universidade de Edimburgo, Darwin conheceu o sistema natural de classificação de Augustin de Candolle, que se baseia na ideia de que a natureza é uma “guerra” entre espécies em competição (DESMOND; MOORE, 1992).
Ainda que Darwin fosse um dedicado estudante de história natural, seu pai não estava satisfeito com seu pouco progresso no estudo da medicina. Constatando que o filho não tinha futuro como médico, resolveu transferi-lo, em 1827, para a Universidade de Cambridge, a fim de se qualificar como clérigo. Na época, ser pároco anglicano permitia uma carreira promissora, que possibilitava uma renda confortável (DESMOND; MOORE, 1992). A maioria dos naturalistas ingleses era formada por clérigos que viam como um de seus deveres explorar as “maravilhas da Criação de Deus”.
Christ’s College, na Universidade de Cambridge, em Cambridge, Inglaterra, onde Darwin estudou teologia de 1828 a 1831. Foto tirada na segunda metade do século XIX.
Em Cambridge, Darwin se uniu ao seu primo William Darwin Fox no interesse por colecionar besouros. Dedicou-se ao assunto com tanto afinco que alguns de seus exemplares foram descritos no livro Illustrations of British entomology8, de James Francis Stephens, no qual foi reconhecida sua autoria nas coletas. Para auxiliar seu trabalho de classificação, Darwin assistiu às aulas de botânica ministradas pelo reverendo John Stevens Henslow e tornou-se um de seus pupilos (DARWIN, 1887a).
Ainda que suas pesquisas sobre besouros, bem como as leituras sobre história natural e o contato com pesquisadores tivessem aberto a mente de Darwin para uma visão mutável das espécies, em 1831 ele terminou seus estudos teológicos em Cambridge encantado com a lógica expressa pelo reverendo William Paley, em seu livro Natural theology9, que pressupõe o fato de que a complexidade e a perfeita relação entre indivíduos e seus ambientes eram provas irrefutáveis da existência e da ação de Deus (DARWIN, 1887a). Segundo Paley (1802, citado por DARWIN, 1887a), o “complacente Deus” criara leis universais e uniformes para controlar o “auspicioso mundo natural”. A quebra dessas leis eram ações do demônio. Darwin terminou o seu curso de teologia em décimo lugar entre 178 estudantes aprovados (DESMOND; MOORE, 1992).
Após o final do curso universitário, e depois de ler o livro de Alexander von Humboldt intitulado Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent10, no qual descreve sua expedição à Amazônia, Darwin entusiasmou-se com a possibilidade de coletar animais e plantas nos trópicos e conhecer toda a sua biodiversidade. Passou a planejar uma viagem às Ilhas Tenerife, na costa da África, com colegas de turma (DARWIN, 1887a). Para melhor se preparar para tal expedição, passou a ter aulas de campo em geologia com o reverendo Adam Sedgwick, que partilhava as mesmas ideias de Paley quanto à religião, à moral e à história natural. Segundo Sedgwick, fósseis de espécies extintas eram provas da ocorrência de catástrofes (como o Dilúvio). As espécies que desapareciam em decorrência dessas catástrofes eram repostas por meio de novas criações. Essa linha de pensamento é conhecida por teoria catastrofista (ver Capítulo 2).
Após o trabalho de campo com Sedgwick, Darwin retornou, em 29 de agosto de 1831, à residência da família em Shrewsbury. Lá recebeu uma carta de Henslow, seu professor de botânica, na qual o convidava a participar da segunda viagem de pesquisa do navio Her Majesty Ship (HMS) Beagle. A proposta era de uma viagem de dois anos à Terra do Fogo, na América do Sul, retornando pelas Índias Ocidentais (Caribe). Darwin não era convidado a viajar como naturalista, mas sim como um cavalheiro, acompanhante do capitão Robert FitzRoy, que fosse qualificado para coletar, observar e fazer anotações de tudo aquilo que fosse relevante sobre a história natural (KEYNES, 2001).
John Stevens Henslow (1796–1861), professor de botânica de quem Darwin foi pupilo. Foi Henslow quem, após ter recusado a proposta de vir a ser o naturalista do navio, indicou Darwin para participar da viagem no HMS Beagle. Durante a viagem de Darwin no Beagle, Henslow publicou as cartas recebidas de seu pupilo. Graças a ele Darwin já se tornara conhecido no mundo científico quando retornou à Inglaterra.
A participação de Darwin na segunda viagem do Beagle foi um marco para o desenvolvimento de seu pensamento sobre a teoria da evolução por seleção natural e para sua carreira como naturalista. Durante a viagem, Darwin fez importantes descobertas geológicas e estudou minerais, plantas e animais. Coletou grande quantidade de espécimes e enviou-as para Cambridge com suas anotações. Fez muitas observações sobre a distribuição geográfica das espécies, especialmente daquelas existentes em ilhas. Nessa viagem, o trabalho de Darwin fez dele um renomado geólogo e coletor de fósseis mesmo antes de seu retorno ao Reino Unido (DESMOND; MOORE, 1992).
Inicialmente, o pai achou que a viagem de Darwin no Beagle seria uma perda de tempo e desaconselhou o filho a empreendê-la. Porém, com o auxílio de seu tio Josiah Wedgwood II, Darwin apresentou a seu pai as vantagens que a viagem proporcionaria para sua educação e experiência de vida (KEYNES, 2001). Convencido, Robert Darwin decidiu dar a assistência necessária (£500 de custo) para a participação de seu filho na expedição.
Em 27 de dezembro de 1831, o Beagle partiu de Plymouth, na Cornualha, Inglaterra. A bordo, Darwin teve muitos problemas de enjoo e, por conta disso, procurava ficar a maior parte do tempo em terra durante a expedição (KEYNES, 2001). Ainda que o tempo planejado de viagem tivesse sido de dois anos, ela durou quase cinco; no entanto, Darwin passou apenas 18 meses a bordo. Antes de sair da Inglaterra, o capitão FitzRoy deu a Darwin um exemplar do primeiro volume do livro Principles of geology11, de Charles Lyell, que descrevia as formas geológicas terrestres como resultado de processos graduais de mudança por longos períodos (LYELL, 1830). A essa teoria – que se opunha ao catastrofismo de Sedgwick – foi atribuído o termo uniformitarismo (ver Capítulo 2). Darwin passou os primeiros dias da viagem lendo esse livro (KEYNES, 2001).
Vice-almirante Robert FitzRoy (1805–1865), capitão inglês do HMS Beagle, durante a viagem em que Darwin participou como cavalheiro acompanhante do capitão. Por pouco Darwin não foi aceito para a viagem no Beagle por causa do formato de seu nariz. FitzRoy acreditava que as formas do rosto indicavam a personalidade das pessoas. Durante a viagem, Darwin teve alguns atritos de opinião com FitzRoy, especialmente sobre escravidão. Após a viagem de circum-navegação, Darwin e FitzRoy entraram em conflito pela independência de Darwin na publicação de seu livro A viagem do Beagle e quanto às possíveis consequências morais do livro A origem das espécies. FitzRoy foi ainda meteorologista, hidrógrafo e governador da Nova Zelândia. Suicidou-se aos 60 anos.
Já no início da viagem, Darwin colocou em ação seu caráter questionador sobre o pensamento reinante na área de biologia. Utilizando uma rede de plâncton e observando a grande variedade e beleza dos espécimes coletados tão distante dos olhos do homem, comentou em seu diário (KEYNES, 2001, p. 22): “Muitas dessas criaturas, tão inferiores na escala da natureza, são exuberantes em suas formas e ricas cores. Isso gera um sentimento de admiração de que tamanha beleza tenha sido aparentemente criada para tão pouca finalidade”12. Mais adiante, na passagem pelo arquipélago de Cabo Verde, Darwin observou uma camada de rocha branca incrustada de corais e conchas quebradas sobre uma camada de lava negra. Para interpretar essa evidência, Darwin utilizou as ideias uniformitaristas de Lyell, e não as catastrofistas de seu professor Sedgwick (DESMOND; MOORE, 1992). Para Darwin, a rocha era o resultado de um processo gradual de soerguimento e acomodação da crosta terrestre ocorrido por longos períodos, e não a consequência do Dilúvio.
Mapa do roteiro percorrido pela segunda viagem do HMS Beagle ao redor do mundo, no período de 27 de dezembro de 1831 a 2 de outubro de 1836. As setas e linhas vermelhas mostram o roteiro inicial da viagem após a saída do navio da Inglaterra, e as azuis apresentam seu retorno.
Em 28 de fevereiro de 1832, o Beagle aportou na América do Sul, em Salvador, na Bahia. No Brasil, Darwin visitou os arquipélagos de São Pedro e São Paulo, de Fernando de Noronha, as ilhas de Abrolhos e as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro. Na parada no Rio de Janeiro, o biólogo Robert McCormick, com ciúmes da preferência que o comandante FitzRoy demonstrava por Darwin, abandonou a expedição e retornou ao Reino Unido. Por sua vez, Darwin fez uma expedição até Macaé e visitou duas fazendas. Ele permaneceu no Brasil por cinco meses e, durante esse período, pôde apreciar a vegetação luxuriante da floresta, a diversidade da fauna e da flora e a maravilhosa paisagem das montanhas e praias. Porém, Darwin detestou a burocracia brasileira, a falta de educação e cortesia de muitos e, principalmente, deplorou a escravidão (DARWIN, 1913).
Darwin no Brasil
Mapa do roteiro percorrido pelo HMS Beagle em sua passagem pelo Brasil. As setas e linhas vermelhas mostram a rota percorrida em sua vinda da Inglaterra, em 1832, e as azuis o seu retorno, em 1836.
Brasil e Cabo Verde foram os dois países nos quais Darwin, a bordo do HMS Beagle, aportou tanto na viagem de ida quanto na de volta para o Reino Unido (DARWIN, 1913). O Brasil suscitou sentimentos extremos no jovem Darwin (KEYNES, 2001). Em Salvador, presenciou a festa de Carnaval, que à época consistia mais em uma guerra de água. Para evitar ser atacado pelos carnavalescos, durante uma caminhada Darwin permaneceu na mata, fora da cidade de Salvador, esperando anoitecer. No entanto, no caminho de volta, teve de enfrentar um temporal e, com isso, provavelmente ficou mais molhado do que se tivesse enfrentado os foliões.
Durante os três meses que passou no Rio de Janeiro, Darwin empreendeu uma viagem ao interior, até a Fazenda Sossego, em Conceição de Macabu. Ficou maravilhado pela beleza da vegetação tropical. Antes de desfrutar da viagem à Fazenda Sossego, porém, Darwin teve de se submeter à desagradável burocracia a fim de conseguir permissão para adentrar o interior (KEYNES, 2001, p. 52):
Nunca é muito agradável submeter-se à insolência de homens que exercem um cargo público; mas ter de se submeter aos brasileiros, que são tão desprezíveis em suas mentes quanto miseráveis como pessoas, é quase intolerável. Mas a perspectiva de florestas selvagens habitadas por lindas aves, macacos e preguiças, e de lagos habitados por capivaras e jacarés, fará qualquer naturalista lamber a poeira até mesmo dos pés de um brasileiro.1
As cenas de crueldade no tratamento de escravos chocaram Darwin. Aquela que mais o ofendeu foi uma disputa comercial, em que o proprietário dos escravos, um inglês residente no Brasil, ameaçou vender separadamente os membros de trinta famílias (DARWIN, 1913).
Na viagem de regresso, em passagem por Salvador, Darwin fez uma última caminhada pela mata sabendo que não teria novamente a oportunidade de vislumbrar tais belezas (DARWIN, 1913, p. 496-497):
Enquanto eu caminhava em silêncio pelos caminhos sombreados e admirava cada paisagem sucessiva, desejava encontrar palavras para expressar as minhas ideias. Epíteto após epíteto era muito pouco para exprimir, para aqueles que não visitaram as regiões tropicais, a sensação de prazer que a mente experimenta. [...] Na minha última caminhada, eu parei mais e mais vezes para vislumbrar essas belezas e tentar fixar na minha mente, para sempre, uma impressão que, naquela época, eu sabia que mais cedo ou mais tarde desapareceria. As formas da laranjeira, do cacaueiro, da palmeira, da mangueira, da samambaiaçu, da bananeira permanecerão claras e separadas; mas as mil belezas que as unem em uma perfeita cena desvanecerão: ainda assim, elas deixarão, como um conto ouvido na infância, uma gravura cheia de indistintas, mas lindas figuras.2
Por sua vez, Darwin detestou Recife: “Todas as partes da cidade são nojentas”3 (KEYNES, 2001). Ansioso por retornar à sua terra natal, Darwin ficou feliz e aliviado em partir de Pernambuco: “Agradeço a Deus por nunca mais ter de visitar um país escravocrata”4 (DARWIN, 1913, p. 499).
Mapa do roteiro percorrido por Darwin em sua viagem pelo interior do Rio de Janeiro, em 1832. As setas e linhas vermelhas mostram o roteiro de ida a Conceição do Macabu, enquanto as azuis apresentam seu retorno ao Rio de Janeiro.
1 “It is never very pleasant to submit to the insolence of men in office; but to the Brazilians who are as contemptible in their minds as their persons are miserable it is nearly intolerable. But the prospect of wild forests tenanted by beautiful birds, Monkeys & Sloths, & Lakes by Cavies & Alligators, will make any naturalist lick the dust even from the foot of a Brazilian.”
2 “Then quietly walking along the shady pathways, and admiring each successive view, I wished to find language to express my ideas. Epithet after epithet was found too weak to convey to those who have not visited the intertropical regions the sensation of delight which the mind experiences. […] In my last walk I stopped again and again to gaze on these beauties, and endeavoured to fix in my mind for ever an impression which at the time I knew sooner or later must fail. The form of the orange-tree, the cocoa-nut, the palm, the mango, the tree-fern, the banana, will remain clear and separate; but the thousand beauties which unite these into one perfect scene must fade away: yet they will leave, like a tale heard in childhood, a picture full of indistinct, but most beautiful figures.”
3 “The town is in all parts disgusting.”
4 “I thank God, I shall never again visit a slave-country.”
Em Bahia Blanca, Argentina, Darwin descobriu inúmeros fósseis de grandes mamíferos extintos. Não encontrou sinais de catástrofes nas proximidades e interpretou que as camadas geológicas seriam o resultado de lentas deposições de marés. Muitos desses fósseis foram enviados para a Inglaterra e, mesmo antes de seu retorno, foram identificados como espécies próximas de animais viventes na América do Sul (DARWIN, 1913). Nessa época, também recebeu da Inglaterra o segundo volume do livro de Lyell. Nele é defendida a ideia de um criacionismo progressivo, contra a evolução, incorporando a existência de “centros de Criação Divina”, na qual espécies seriam gradativamente criadas após extinções (LYELL, 1832).
Nessa expedição, o Beagle trazia de volta à Terra do Fogo três patagões (indivíduos nativos da Patagônia) que tinham sido levados à Inglaterra por ocasião da primeira expedição. Os três tinham sido treinados para que fossem missionários e tentassem transmitir os hábitos civilizados aos nativos que ali habitavam. Darwin ficou espantado, pois, após o regresso ao local de origem, os três imediatamente retornaram aos seus hábitos selvagens e não manifestaram o desejo de retomada dos comportamentos “civilizados”. Chegou a comentar em seu diário: “Eu não poderia imaginar quão grande era a diferença entre o homem selvagem e o civilizado: é maior que aquela entre o animal selvagem e o domesticado”13 (DARWIN, 1913, p. 16).
Fueguinos, habitantes da Terra do Fogo. O navio HMS Beagle aparece ao fundo no Estreito de Magalhães, ao sul do continente sul-americano. A viagem no navio Beagle foi importante para Darwin no que se refere ao aprendizado nas áreas de biologia e geologia e ao desenvolvimento da teoria da evolução. A observação do comportamento dos fueguinos e a percepção das diferenças para os civilizados europeus foram importantes para que Darwin percebesse as ligações entre o homem e os animais.
Darwin vivenciou um terremoto quando esteve no Chile. O cataclismo destruiu várias cidades chilenas (Concepción foi uma das mais afetadas) e foi possível constatar a elevação de terra ocorrida em diversos locais. O capitão FitzRoy encontrou ostras aderidas às pedras da costa até 10 m acima do nível anterior (DARWIN, 1913). Era a constatação prática do processo gradual de elevação do continente da teoria de Lyell.
Nas Ilhas Galápagos (Equador), Darwin observou a mais extraordinária característica na história natural de espécies em toda a sua viagem – a especiação em ilhas. Essa característica peculiar à história natural de ilhas surpreendeu Darwin de tal maneira que descreveu espantado (DARWIN, 1913, p. 419):
[...] as diferentes ilhas, até certa extensão, são habitadas por um grupo diferente de seres. [...] Eu nunca sonhei que ilhas, separadas por 50 a 60 milhas [80 a 97 km] de distância, e a maioria delas à vista umas das outras, formadas pelas mesmas rochas, com um mesmo clima, de mesma altitude, pudessem ser habitadas de forma diferente.14
Inicialmente Darwin não deu a devida atenção ao vice-governador das ilhas, senhor Lawson, que afirmara poder identificar, apenas pelo formato da carapaça, de que ilha eram as tartarugas de Galápagos (KEYNES, 2001). A desatenção de Darwin teve consequências mais adiante em seus estudos, pois ele não identificara o nome da ilha em cada uma de suas amostras coletadas em Galápagos. Darwin foi salvo pelas meticulosas anotações de seu auxiliar de campo, Syms Covington, que tivera esse cuidado (DARWIN, 1913).
As tartarugas das Ilhas Galápagos (subespécies de Geochelone nigra) apresentam diferenças nas formas do casco de acordo com o ambiente em que vivem. Aquelas de ambientes com vegetação herbácea têm carapaça baixa (A), enquanto aquelas que vivem sob vegetação arbustiva têm carapaça elevada (B), que permite ao animal consumir folhas dos arbustos. A percepção das adaptações desses animais aos diferentes ambientes contribuiu para o desenvolvimento da teoria de Darwin.
Foto A: Karelj
Foto: B. Davey
O retorno de Darwin à Inglaterra só ocorreu em 2 de outubro de 1836, quando o Beagle aportou em Falmouth, na Cornualha, quase cinco anos após sua partida do porto de Plymouth. O navio fez a volta ao mundo e, no retorno, passou por Taiti, Nova Zelândia, Austrália, Ilhas Cocos, Ilhas Maurício, África do Sul, além de uma breve parada em Salvador (Bahia) e em Recife (Pernambuco). Darwin chegou à Inglaterra como um renomado naturalista graças aos seus fósseis e às publicações por Henslow de suas cartas enviadas durante a viagem (DESMOND; MOORE, 1992). Em reconhecimento pelo trabalho na viagem, seu pai deu-lhe uma generosa pensão que permitia que abrisse mão de outras carreiras e se dedicasse aos seus estudos científicos.
Por já ser considerado uma celebridade nos círculos científicos, a recepção a Darwin em seu retorno à Inglaterra foi muito calorosa. Dessa forma, logo ao final do ano foi convidado a dar uma palestra na Universidade de Cambridge. Ainda nesse mesmo ano, apresentou um artigo para a Sociedade Geológica de Londres. Ser o foco de tanta atenção o fez sentir “[...] como um pavão admirando seu rabo15” (DESMOND; MOORE, 1992).
As primeiras providências que tomou no seu retorno relacionaram-se à organização e catalogação de suas coleções, bem como à distribuição de seus exemplares a especialistas para identificação. Henslow ficou com as coletas botânicas, e os fósseis com o promissor anatomista Richard Owen. As amostras geológicas foram recebidas prontamente por geólogos, mas as amostras animais tiveram de esperar mais tempo em razão do grande trabalho acumulado pela maioria dos zoólogos da época (DESMOND; MOORE, 1992).
Darwin tinha ainda outro grande compromisso: escrever um livro sobre sua viagem no Beagle. O capitão FitzRoy já estava comprometido com uma editora para a publicação das memórias da viagem. Tendo visto as anotações de Darwin, FitzRoy pediu que escrevesse a parte relativa às coletas biológicas da expedição. O livro de Darwin viria a ser o terceiro volume da publicação sobre a viagem do Beagle dentro do trabalho de FitzRoy (DESMOND; MOORE, 1992).
As primeiras identificações de fósseis coletados por Darwin mostraram-se extremamente reveladoras. Um crânio gigantesco que Darwin coletara na Argentina, o qual se acreditara ser de um parente de rinoceronte, foi identificado por Owen como sendo de um roedor (nomeado Toxodon), talvez parente de uma capivara. Owen também identificou fósseis aparentemente relacionados às atuais preguiças, tatus e lhamas, todos eram animais restritos à região neotropical (DARWIN, 1887a). Ao mesmo tempo, as aves coletadas por Darwin nas diversas ilhas do arquipélago de Galápagos, que estavam sendo identificadas pelo ornitólogo John Gould, também indicavam ser aparentadas a espécies da América do Sul. Já as tartarugas de Galápagos, que Darwin supusera que tivessem sido introduzidas por piratas, foram identificadas pelo zoólogo Thomas Bell como únicas do local (DARWIN, 1887a).
Inicialmente identificado como um roedor, o Toxodon hoje é reconhecido como um membro da extinta ordem dos Notoungulados, animais de cascos, placentários, restritos à região neotropical. Era um animal herbívoro de grande porte (1,5 m de altura por 2,7 m de comprimento), habitante de regiões áridas ou semiáridas. O toxodonte foi extinto durante o Pleistoceno (de 2,59 Ma a 0,0117 Ma), provavelmente por competição com outros herbívoros que colonizaram a América do Sul após a ligação através do Istmo do Panamá. A relação entre os fósseis coletados e as espécies atuais permitiu a Darwin perceber a ocorrência de especiação a partir de ancestrais do local. No caso do toxodonte, Darwin supôs que fosse o ancestral da capivara.
A partir de março de 1836, durante o período final da viagem do Beagle, Darwin já vinha tendo dúvidas sobre a imutabilidade das espécies. Raciocinando sobre as variações entre ilhas de suas amostras de pássaros de Galápagos, Darwin comentou em suas anotações feitas ainda no Beagle (KEYNES, 2001, p. XX): “[...] esses fatos podem minar a estabilidade das espécies”16. No entanto, os resultados da identificação de seus fósseis, apresentados pelos especialistas após seu retorno ao Reino Unido, não deixavam dúvidas: ficava claro que espécies imigrantes se alteravam e se tornavam uma gama de novas espécies. Acredita-se que Darwin tornou-se um evolucionista no período de 7 a 12 de março de 1837, quando se encontrava em descanso na casa de seu pai (DE BEER, 1960). Foi nessa época que ele iniciou suas anotações em uma caderneta, a qual deu o nome de “caderno de transmutação de espécies”.
As várias espécies de tentilhões das Ilhas Galápagos foram importantes para a argumentação de Darwin na defesa da evolução, comparando suas diferenças em morfologia (especialmente na forma do bico), habitat e comportamento. Elas também indicavam especiação a partir de ancestrais da América do Sul e adaptação aos diferentes ambientes das ilhas.
Caderno de anotações (caderno B) sobre transmutação de espécies, no qual Darwin, em março de 1837, fez seu primeiro desenho de uma árvore evolutiva. Lê-se no topo da página: “eu penso”.
Os pensamentos evolucionistas de Darwin eram considerados completamente heréticos para seus amigos anglicanos da comunidade científica. Ideias materialistas tinham sido aproveitadas no Reino Unido por agitadores socialistas, e o clero acreditava que elas atacavam a base divina da ordem social que estava ameaçada pela recessão e pela desordem. Darwin não queria se associar a essas ideias blasfemas; era reservado e bastante cuidadoso até mesmo em seus comentários sobre elas com os amigos. Abria-se, apenas, a seu irmão Erasmus. Porém, era com seus amigos da comunidade científica com quem estava, na realidade, ansioso por partilhá-las (DESMOND; MOORE, 1992).
Toda esta situação de tensão levou Darwin a ter problemas de saúde. Sua doença era agravada pela ansiedade, pelo estresse e pela excitação. Os sintomas eram dores de cabeça, palpitação, dores de estômago, vômitos, tremores e calores (DESMOND; MOORE, 1992). Darwin carregou esses problemas pelo resto de sua vida, o que, por vezes, resultou em atrasos em seu trabalho. Tentativas de tratamento pouco ajudaram, mesmo testando os mais diversos métodos anticonvencionais. Na atualidade, especula-se que Darwin tenha contraído a doença de Chagas quando esteve no Chile, pois descreve em seu diário que foi picado por um barbeiro. Recentemente sugeriu-se que ele teria a síndrome do vômito cíclico, uma doença genética (HAYMAN, 2009).
Darwin passou a buscar evidências que comprovassem sua teoria a respeito da transmutação de espécies (como a evolução era conhecida naquela época) e dos mecanismos que pudessem explicar como isso acontecia. Passou a comunicar-se com melhoristas de animais domésticos e realizou diferentes leituras no intuito de encontrar detalhes sobre a seleção artificial de caracteres desejáveis. Nessas buscas, deparou-se com um folheto do melhorista John Sebright com o seguinte texto (DESMOND; MOORE, 1992, p. 247-248):
Um inverno rigoroso, ou a escassez de alimentos, ao destruir os fracos e os doentes, tem todos os bons efeitos da mais habilidosa seleção. [...] o fraco e o doente não vivem para disseminar suas mazelas.17
Em setembro de 1838, Darwin leu o livro An essay on the principle of population18, de Thomas Malthus (1798), no qual o autor argumenta que a população humana cresce rápido enquanto houver abundância de alimentos. Quando o alimento se torna escasso, o tamanho populacional se estabiliza. Darwin percebeu a relação entre os argumentos de Malthus e a seleção natural de indivíduos de uma população na natureza. Como já tinha conhecimento da seleção artificial realizada por criadores de animais domésticos, percebeu que o mesmo que acontece sob condições artificiais poderia estar acontecendo na natureza, em razão da escassez de recursos. A evolução seria o resultado da sobrevivência e da competição reprodutiva entre indivíduos da mesma espécie (DARWIN, 1887a).
Darwin também passou a buscar estabilidade em sua vida emocional. Em 29 de janeiro de 1839, casou-se com sua prima Emma Wedgwood, nove meses mais velha que ele, filha de seu tio Josiah Wedgwood II. Para o casamento, seu tio deu um dote de £5.000 mais £400 por ano. Robert Darwin, seu pai, acrescentou £10.000 para investimentos. Após um período morando em Londres, a família mudou-se em 17 de setembro de 1842 para uma casa no interior – Down House – ao sul de Londres, em uma vila hoje conhecida por Downe (DESMOND; MOORE, 1992). O casamento e a vida no campo permitiram que Darwin desfrutasse da tranquilidade da qual precisava para concentrar-se em seu trabalho de pesquisa; no entanto, continuou tendo problemas de saúde quando ficava muito estressado.
Em 1º de junho de 1839, foi finalmente publicado o livro de FitzRoy sobre a viagem do Beagle, cujo terceiro volume teve a contribuição de Darwin. O lançamento fora adiado diversas vezes por causa de atrasos no término dos volumes de FitzRoy. O volume escrito por Darwin foi sucesso imediato e, posteriormente, passou a ser publicado separadamente, como livro avulso, sob o nome de Journal of researches into the natural history and geology of the countries visited during the voyage of H.M.S. Beagle round the world, under the command of Capt. Fitz Roy, R.N.19 (hoje conhecido por A viagem do Beagle) (DARWIN, 1913). Darwin dedicou o livro ao geólogo Charles Lyell, de quem se tornara próximo.
No início da década de 1840, Darwin decidiu que precisava avaliar o impacto da exposição de suas ideias evolucionistas e passar a redigi-las. Inicialmente escreveu para Lyell, que ficou chocado. Em maio de 1842, após a finalização de alguns compromissos editoriais, Darwin e a família foram passar uns dias de férias com os Wedgwood em sua residência em Maer, e com seu pai em Shrewsbury. Nesses dois meses de retiro familiar, Darwin redigiu um esboço de sua teoria com 35 páginas (DARWIN, 1909a). Outro biólogo que Darwin utilizou como confidente de suas ideias foi o botânico Joseph Hooker, com quem fizera amizade. Darwin escreveu-lhe mencionando sua opinião sobre transmutação. Desculpando-se de tal suposta calúnia, apontou que sua declaração era “como confessar um assassinato”20 (DARWIN, 1887b, p. 23). Em sua resposta, Hooker apenas mencionou que gostaria de saber como Darwin acreditava que as mudanças aconteciam nas espécies, já que nenhuma das opiniões que conhecia o tinha convencido. Darwin passou então a transformar seu esboço em um ensaio que, em setembro de 1844, já tinha 231 páginas (DARWIN, 1909b). Preocupado em tornar suas ideias públicas, Darwin preparou uma carta a ser aberta por sua esposa em caso de sua morte, na qual solicitava a publicação desse ensaio.
Nesse ínterim, em outubro de 1844, foi publicado o livro Vestiges of the natural history of creation21. O livro, escrito por Robert Chambers (mas publicado anonimamente), apresentava ideias lamarckistas (ver Capítulo 2) e tornava pública a noção de transmutação das espécies. Tinha um estilo populista de escrita e se transformou na sensação da classe média britânica. As informações relacionadas à geologia e à zoologia, porém, eram pobres. As reações geradas pelo livro nos naturalistas clericais anglicanos foram ferozes. Para Darwin, as objeções ao livro deixaram claro que a comunidade científica anglicana se opunha completamente à transmutação e que essa seria a reação às suas ideias caso se tornassem públicas (DESMOND; MOORE, 1992).
Era preciso encontrar argumentos para justificar suas teses. Com a ajuda de Hooker, Darwin buscou achar fundamentos e explicar fatos de sua teoria que eram duvidosos (DARWIN, 1887a). Emma também foi consultada e indicou trechos que não estavam bem descritos. Apenas em 5 de janeiro de 1847, Darwin finalmente entregou a Hooker uma cópia de seu “ensaio” para as tão desejadas críticas. Em 1850, Hooker passou a ajudar Darwin também na busca por comprovações da evolução e a testar ideias evolucionistas (DARWIN, 1887b).
Darwin começou seu trabalho com cracas em 1º de outubro de 1848 (DARWIN, 1887a). Esse trabalho atrasou consideravelmente a publicação de seu livro sobre evolução, mas foi muito instrutivo. Permitiu que percebesse que a ligação entre diversos grupos de cracas, quanto à sua classificação zoológica, estava relacionada a uma ancestralidade comum. Para Darwin, as homologias entre diferentes cracas mostravam como órgãos poderiam mudar de função e atender a novas condições ambientais. O livro de Darwin sobre esses crustáceos foi publicado apenas em 1854 e fez dele, à época, o maior especialista sobre o assunto (DESMOND; MOORE, 1992).
Nesse período, duas mortes na família afetaram profundamente o pensamento de Darwin. Em novembro de 1848, faleceu seu pai e, em 23 de abril de 1851, sua filha mais velha – Anne – aos 10 anos de idade. “Nós perdemos a alegria da casa e o consolo de nossa velhice”22 (DARWIN, 1887a, p. 134). Em razão disso, Darwin perdeu toda a fé em um Deus beneficente e passou a ver o Cristianismo como algo fútil (DESMOND; MOORE, 1992). A morte de seu pai e de sua filha também teve forte influência em seu pensamento evolutivo, pois passou a ver os eventos da natureza como tragicamente incidentais, desvinculando-os do controle divino.
Anne Elizabeth Darwin, filha mais velha de Darwin (segunda entre os filhos), que faleceu em 23 de abril de 1851, aos 10 anos de idade, após ter contraído escarlatina (a morte provavelmente foi causada por tuberculose). Com sua morte, Darwin passou a considerar como incidentais os processos de nascimento, reprodução e morte.
Em setembro de 1855, a publicação de um artigo na revista Annals and magazine of natural history aceleraria a apresentação da teoria da evolução. Tratava-se do artigo de autoria de Alfred Russel Wallace, intitulado On the law which has regulated the introduction of new species23, o qual transformou o trabalho de Darwin (WALLACE, 1855). O envolvimento de Wallace no desenvolvimento do pensamento evolutivo deu um novo rumo e demandou urgência na publicação da teoria de Darwin.
Alfred Russel Wallace, filho de uma família de origem escocesa, nasceu em 8 de janeiro de 1823, em Llanbadoc, próximo de Usk, no País de Gales. Nasceu quase 14 anos depois de Darwin. Sua família era modesta, de uma decadente classe média britânica, sem a prosperidade e posição social da família de Darwin. Wallace era o oitavo filho de nove irmãos. A família mudou-se do País de Gales para Hertford, ao norte de Londres, quando Wallace tinha 5 anos de idade (MARCHANT, 1916).
Por causa do agravamento da situação financeira de seu pai, Wallace teve de deixar a escola aos 13 anos. Trabalhou na empresa de um de seus irmãos como carpinteiro ou fazendo levantamentos topográficos para as novas estradas de ferro britânicas, enquanto assistia às aulas à noite. Nesse trabalho, Wallace percorria grandes extensões do interior da Inglaterra e do País de Gales, o que fez desenvolver seu interesse por história natural. Mais tarde, com o declínio da empresa do irmão, Wallace passou a dar aulas de desenho topográfico, confecção de mapas e topografia em uma escola em Leicester (Inglaterra) e, posteriormente, de ciência e engenharia em Neath (no País de Gales), entre 1844 e 1846 (MARCHANT, 1916).
Enquanto estava em Leicester, em 1845, Wallace leu avidamente. Entre os livros que leu, encontravam-se An essay on the principle of population, de Malthus (1798), o controverso livro Vestiges of the natural history of creation, de Robert Chambers (1844), o Principles of geology, de Lyell (1830), e a segunda edição, em 1845, do livro de Darwin, A viagem do Beagle (DARWIN, 1913). Nesse período, tornou-se amigo de um naturalista que veio a ser um famoso evolucionista – Henry Walter Bates (MARCHANT, 1916).
Thomas Robert Malthus (1766–1834), economista político e demógrafo inglês, que, com seu livro An essay on the principle of population, publicado em 1798, influenciou Darwin e Wallace na descoberta da seleção natural como o principal mecanismo evolutivo. Darwin e Wallace perceberam que a evolução seria o resultado da sobrevivência e da competição reprodutiva entre indivíduos.
Compelido por seu amor à biologia, Wallace decidiu ganhar a vida coletando espécimes biológicos nos trópicos. Juntos, Wallace e Bates realizaram uma viagem pela Amazônia em busca de espécimes e de respostas a perguntas evolucionistas. Chegaram à Amazônia em 26 de maio de 1848 e ficaram a maior parte do primeiro ano fazendo coletas em torno de Belém, no Pará. Junto com Bates, Wallace fez muitas descobertas importantes durante os quatro anos em que ficou na Amazônia, mas os dois não chegaram a nenhuma resposta às suas perguntas evolucionistas. Parte dos espécimes coletados por Wallace foi perdida em um incêndio no navio, durante a viagem de volta ao Reino Unido (WALLACE, 1889).
Ainda que tenha perdido parte de suas anotações da viagem, Wallace publicou seis artigos científicos e dois livros nos 18 meses em que ficou em Londres. Em 1854, partiu para uma nova viagem de coleta de espécimes, dessa vez para o arquipélago malaio (Malásia e Indonésia). Chegou a Cingapura em 20 de abril e permaneceu oito anos na região. Nessa viagem, Wallace coletou quase 110.000 insetos, 7.500 conchas, 8.050 aves e 410 mamíferos e répteis. Mais de 1.000 espécies novas para a ciência. Descobriu, em sua viagem, um limite de distribuição que separa a fauna oriental da fauna australiana, mais tarde chamado de “linha de Wallace” (WALLACE, 2001). Hoje, a linha de Wallace é reconhecida como produto de movimentos tectônicos de placas (deriva continental).
Wallace cresceu no ambiente da classe operária britânica, em razão disso ele era mais aberto a novidades do que Darwin. Esse fato também o tornou muito menos temeroso das reações públicas às suas opiniões (GHISELIN, 2008). Quando partiu para sua viagem pela Amazônia, em 1848, Wallace já acreditava na transmutação das espécies. Lá ele percebeu que barreiras geográficas, como os grandes rios da Amazônia, poderiam por vezes separar a distribuição de espécies aparentadas (WALLACE, 1889).
Wallace enviou da Indonésia, para que fosse publicado na Inglaterra, o artigo On the law which has regulated the introduction of new species24. Nesse artigo, ele aponta que uma nova espécie tem origem de outra similar, ideia que ele já vinha desenvolvendo desde sua viagem pela Amazônia (WALLACE, 1855). Era o mais importante artigo sobre evolução até então publicado. Distribuído em setembro de 1855, o artigo foi lido tanto por Lyell quanto por Darwin e despertou a atenção de muitos cientistas. Darwin, até então, não havia publicado nada explícito sobre evolução (GHISELIN, 2008).
A publicação do artigo de Wallace (1855) despertou a atenção de Lyell. A impressão foi tal que ele passou a fazer anotações em um caderno denominado “caderno de espécies”. Em meados de abril de 1856, Lyell visitou Darwin em Down House e, tendo conhecimento de que Darwin vinha trabalhando na transmutação de espécies, pediu que narrasse sobre suas pesquisas. Darwin relatou-lhe suas opiniões sobre a seleção natural (a respeito da qual vinha trabalhando há 20 anos em segredo). Percebendo que Wallace estava trabalhando na mesma linha de raciocínio, Lyell encorajou Darwin a publicá-las (GHISELIN, 2008). Em maio de 1856, Darwin começou a escrever um longo livro sobre sua teoria.
Darwin era um dos clientes de Wallace em suas coletas na Indonésia. Em uma das correspondências, em 1º de maio de 1857, Darwin mencionou sobre seu trabalho (MARCHANT, 1916, p. 129):
Percebi que pensamos de forma muito parecida e que, até certo ponto, chegamos às mesmas conclusões. [...] Nesse verão, fará 20 anos desde que iniciei meu primeiro caderno sobre como as espécies e as variedades diferem entre si [...] acredito que só vá para publicação após dois anos.25
O botânico americano Asa Gray era outro correspondente de Darwin. Em 20 de julho de 1856, Darwin comunicou, em uma carta, que estava trabalhando na teoria da evolução. Já em setembro de 1857, Darwin lhe escreveu a respeito do princípio da seleção natural (GHISELIN, 2008). Asa Gray viria a se tornar testemunha do pensamento evolutivo de Darwin.
Em fevereiro de 1858, pouco tempo após receber uma carta de Darwin na qual o encorajava a teorizar sobre evolução, Wallace teve um ataque de malária na ilha de Halmahera, na Indonésia. Posteriormente, ele mencionou (WALLACE, 1905, p. 361):
Todo dia, durante os sucessivos ataques de frio e calor, eu tinha que me deitar por várias horas; nesse tempo, eu não tinha nada a fazer a não ser refletir sobre assuntos que particularmente me interessavam.26
Com isso, Wallace pensou a respeito das doenças e da fome e sobre como elas controlavam as populações humanas. Também pensou nas evidências recentes que mostravam que a Terra deveria ser muito antiga. Com base nisso, concluiu que populações que apresentassem variações e que fossem mais adaptadas ao ambiente durariam por mais tempo e eventualmente se tornariam novas espécies ajustadas às novas condições. Wallace preparou um manuscrito com sua descoberta sobre o mecanismo para a transmutação e o enviou a Darwin (MARCHANT, 1916). Logo para quem! Pedia a Darwin que apresentasse o artigo para Lyell, se achasse de valor, e solicitou que os dois o enviassem para publicação em alguma revista importante.
Em 18 de junho de 1858, o manuscrito de Wallace chegou às mãos de Darwin, que ficou atônito com a mensagem. Imediatamente ele entrou em contato com Lyell e perguntou-lhe o que deveria fazer. Na carta a Lyell, Darwin afirmava (DARWIN, 1887b, p. 116):
Há mais ou menos um ano atrás, você me recomendou um artigo de Wallace, disponível em “Annals”, que havia interessado você, e, como eu estava me correspondendo com ele e sabia que isso o agradaria muito, contei-lhe a respeito. Ele me mandou o seguinte anexo hoje e pediu que o enviasse para você. Parece-me que vale a pena ser lido. As suas palavras se tornaram uma forte realidade – de que alguém me anteciparia. Você me disse isso, quando lhe expliquei aqui resumidamente as minhas opiniões sobre a “Seleção Natural” depender da luta pela existência. Eu nunca vi maior coincidência: se Wallace estivesse de posse do esboço da minha monografia escrita em 1842 não teria feito um resumo melhor! Até mesmo meus capítulos usam seus termos como título.27
Darwin também pediu a opinião de Hooker. Tendo conhecimento dos estudos de Darwin, tanto Lyell quanto Hooker desejavam dar a ele o maior crédito pela descoberta. Assim, optaram por publicar a teoria em um trabalho em conjunto. Wallace não foi consultado sobre essa decisão, nem os autorizou a fazer a publicação conjunta. Ademais, não haveria tempo hábil para consultá-lo. Darwin pouco se envolveu no processo, pois, durante esse intervalo, em 28 de junho, seu filho mais novo (Charles, de um ano e sete meses de idade) faleceu após ter contraído escarlatina. Nem Darwin nem Wallace compareceram à reunião da Sociedade Linneana de Londres em 1o de julho de 1858, quando o trabalho conjunto foi apresentado. Darwin se recuperava da morte de seu filho e Wallace ainda se encontrava no arquipélago malaio (GHISELIN, 2008).
Joseph Dalton Hooker (1817–1911) foi um grande botânico inglês e diretor, por 20 anos, do Jardim Botânico Real em Kew. Hooker ajudou Darwin a encontrar evidências da evolução e argumentos para justificá-la. Foi ele quem revisou os textos do livro de Darwin.
Alfred Russel Wallace (1823–1913), importante biólogo e geógrafo britânico que desenvolveu a teoria da evolução por seleção natural, independentemente de Charles Darwin. Wallace desenvolveu suas pesquisas tanto na Amazônia quanto na Indonésia. As descobertas de Wallace pressionaram Darwin a publicar sua teoria.
Charles Lyell (1797–1875), grande geólogo inglês que advogou e popularizou o conceito do uniformitarismo. Tornou--se amigo próximo de Darwin e confidente sobre a teoria da evolução por seleção natural, ainda que dela discordasse. Lyell e Hooker foram os cientistas que apresentaram o trabalho conjunto de Darwin e Wallace na reunião da Sociedade Linneana de Londres, em 1º de julho de 1858.
Asa Gray (1810–1888), botânico americano com quem Darwin se correspondia e de quem recebeu muitas informações que o ajudaram no desenvolvimento da teoria da evolução por seleção natural. Darwin também trocou confidências com Asa Gray sobre sua teoria.
O artigo foi estruturado em quatro partes: uma carta de apresentação de Lyell e Hooker; o rascunho de um capítulo não publicado de Darwin, escrito em 1844; o resumo de uma carta de Darwin a Asa Gray, datada de 5 de setembro de 1857, em que menciona sua teoria; e o manuscrito de Wallace (GHISELIN, 2008). A carta de apresentação (de Lyell e Hooker) aponta que Darwin e Wallace chegaram independentemente à mesma teoria a respeito do aparecimento e da perpetuação de variedades e formas específicas em nosso planeta. Além disso, pede que os dois sejam merecidamente reconhecidos como os pensadores originais dessa linha de pesquisa e mostra que Darwin, por diversas vezes nos anos anteriores, foi encorajado pelos autores da carta a publicar suas opiniões. Para dar ênfase ao trabalho de Darwin, as partes de sua autoria são apresentadas antes da parte de Wallace e têm a intenção de provar que ele tinha descoberto a seleção natural muitos anos antes da referida publicação. A carta a Asa Gray busca provar que ele já tinha discutido o assunto sobre seleção natural com vários colegas próximos e que vinha escrevendo um livro a respeito. A parte de Wallace é uma nota preliminar que buscava a opinião de Darwin, mas que expunha claramente os princípios da seleção natural (GHISELIN, 2008).
Grande parte da audiência não deve ter entendido o que estava sendo apresentado e as grandes implicações não foram óbvias. O manuscrito foi publicado em agosto de 1858 (GHISELIN, 2008). Seria fácil aceitar que a seleção natural pudesse dar origem a raças e variedades, como escrito no manuscrito. Porém, seria bem mais difícil aceitar que o mecanismo pudesse dar origem a novas espécies e, até mesmo, permitir que todos os organismos vivos descendessem de um ancestral comum. Essa consequência da teoria da evolução tornou-se evidente apenas com o livro de Darwin publicado no ano seguinte.
Wallace só tomou conhecimento do ocorrido por carta de Hooker. Darwin ficou preocupado com sua reação, mas, em 6 de outubro de 1858, Wallace escreveu uma carta a Hooker na qual comunicava estar de acordo com a iniciativa dele e de Lyell e que ficara satisfeito de ter persuadido Darwin a publicar seu livro (MARCHANT, 1916).
Darwin queria divulgar suas ideias ao grande público e apresentá-las em detalhes, embasando-as em evidências. Após um curto descanso em razão do trauma pela morte do filho, Darwin passou a trabalhar duro em seu manuscrito. Deixou de lado a intenção de escrever um grande livro e resolveu publicar um resumo de suas ideias. Nesse meio tempo, surgiram as poucas reações à publicação conjunta de Darwin e Wallace (DARWIN, 1887a, p. 157). O zoólogo Alfred Newton comentou:
Teria Darwin roubado a teoria de Wallace?
Dedicatória feita por Wallace a Darwin, em seu livro The Malay Archipelago [O Arquipélago Malaio] (2001), na qual se lê: “A Charles Darwin, [...] eu dedico este livro, não apenas como uma prova de estima pessoal e amizade, mas também para expressar a minha profunda admiração pelo seu intelecto e seus trabalhos”.
A teoria da evolução por seleção natural é de Darwin ou de Wallace? O melhor é dizer que ela é dos dois. Na realidade, durante a segunda metade do século XIX, a teoria era creditada aos dois. Porém, ao final do século XIX e início do século XX, a seleção natural como mecanismo da evolução passou por um período de descrédito. Assim, a teoria caiu um pouco no esquecimento. A popularidade do livro de Darwin o manteve lembrado (DESMOND; MOORE, 1992). O esquecimento da participação de Wallace na teoria da evolução levantou suspeitas sobre a lisura do processo de publicação do artigo conjunto na Sociedade Linneana de Londres, em 1º de julho de 1858, especialmente por aqueles desejosos de sensacionalismo (QUAMMEN, 1997). Alguns argumentam, baseados no tempo que os navios demoravam para retornar do arquipélago malaio e chegar à Inglaterra, que Darwin teria recebido a correspondência em maio de 1858, e não em meados de junho como por ele foi anunciado.
Hoje, a vida de Darwin é um livro aberto, com a publicação de centenas de cartas por ele enviadas e recebidas (DARWIN, 1887b). A vida de Wallace também (MARCHANT, 1916). Hoje é sabido que, quando Darwin se tornou um evolucionista, Wallace tinha apenas 14 anos e ainda nem trabalhava com história natural. Wallace, por sua vez, tornou-se um evolucionista apenas em 1845, quando Darwin já tinha dado conhecimento de suas ideias evolucionistas com a apresentação a Hooker de seu ensaio sobre evolução por seleção natural. Na realidade, as cartas mostram até mesmo que Wallace chegou às suas conclusões sobre a seleção natural auxiliado pela correspondência entre ele e Darwin. A seleção natural foi uma brilhante ideia que Darwin e Wallace tiveram. Porém, foi o enorme peso das evidências apresentadas por Darwin, em seu livro, que a fizeram crível.
Darwin e Wallace desenvolveram uma grande admiração e respeito um pelo outro. Para não deixar dúvidas sobre a lisura da descoberta, Wallace frequentemente destacava que Darwin tinha mais direito à ideia da seleção natural e, até mesmo, deu a um de seus livros o título de Darwinismo (MARCHANT, 1916). Darwin, por sua vez, deu amplamente a Wallace o crédito de codescobridor da seleção natural.
A reação do anatomista Thomas Huxley não foi muito diferente: “Como fui idiota de não ter pensado nisso!”29 (DARWIN, 1887a, p. 197).
Thomas Henry Huxley (1825–1895), anatomista inglês que foi grande defensor da teoria da evolução, conhecido como o “buldogue de Darwin”. Antes da publicação do trabalho conjunto de Darwin e Wallace, Huxley não acreditava na transmutação de espécies. Os dois se tornaram muito próximos após a publicação do livro A origem das espécies, apesar de não serem confidentes.
A saúde de Darwin não ajudou na confecção de seu livro. Com tanta excitação, raramente conseguia escrever sem dores de barriga. Hooker e Lyell foram imprescindíveis na revisão dos textos e Darwin acabou fazendo grandes alterações no texto original. Lyell, entretanto, continuava preocupado com o fato de “a dignidade do homem estar em jogo”30. Quando o livro foi para impressão, Darwin foi descansar em um spa, pois foi acometido de vômitos e calores, e tinha a pele coberta por erupções e inchaços nas pernas. De lá enviou para muitos cientistas as cópias de cortesia com comentários, pois já previa antecipadamente suas reações. A Stevens Henslow comentou: “Eu temo que você não concorde com seu pupilo”31 (DARWIN, 1887a, p. 218). A Richard Owen escreveu: “parecerá uma obscenidade”32. Embora o livro tenha sido posto à venda em 22 de novembro de 1859, seu lançamento só ocorreu em 24 de novembro (DESMOND; MOORE, 1992).
On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life (DARWIN, 1859) é o único grande tratado científico que foi escrito, deliberadamente, como literatura popular. A teoria está estruturada em quatro partes: a) indivíduos de uma mesma espécie diferem entre si de uma maneira hereditária; b) mais indivíduos nascem em uma população do que é possível sobreviver; c) alguns indivíduos possuem características que lhes dão maior chance de sobrevivência e reprodução do que outros da mesma espécie; d) essas características favoráveis vão sendo passadas para as gerações futuras e são acumulativas. A simplicidade dessas ideias permitiu que fossem de fácil compreensão para o público comum.
Ainda que, em seu livro A origem das espécies, Darwin tenha procurado não mencionar sobre a origem do homem, a interpretação ficou óbvia para os leitores. A imprensa aproveitou a controvérsia para estampar caricaturas que, muitas vezes, apresentavam Darwin com corpo de macaco. Darwin explicitou suas opiniões sobre a origem do homem em seu livro The descent of man, and selection in relation to sex [A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo] (1871).
As reações ao livro foram imediatas. Adam Sedgwick comentou em uma carta a Darwin em dezembro de 1859 (DARWIN, 1887c, p. 248):
Li seu livro com mais dor do que prazer. Partes dele admirei bastante; em partes, ri até não poder mais; outras partes li com muita tristeza, pois acredito que sejam completamente falsas e desagradavelmente maliciosas.33
Adam Sedgwick (1785–1873), geólogo inglês que foi professor de Darwin em pesquisa de campo no País de Gales. Após a publicação do livro A origem das espécies, Sedwick passou a ser um dos principais adversários da teoria da evolução.
Os críticos também foram impiedosos. Ainda que Darwin tenha evitado controvérsias no livro, a interpretação de que o homem tinha como origem o macaco foi imediatamente destacada pela imprensa.
Owen apontou que o livro era exemplo do “abuso da ciência”. Com tanta pressão dos religiosos, Darwin amenizou o tom das edições seguintes. Uma das mudanças foi feita em sua frase final do livro (DARWIN, 1859, p. 490):
Existe uma grandeza nessa visão de vida, com seus diversos poderes, originalmente soprados em algumas formas ou em uma só; e isso, enquanto esse planeta gira de acordo com as leis fixas da gravidade; de um início tão simples, as mais lindas e maravilhosas, infinitas formas evoluíram e estão evoluindo.34
A partir da segunda edição, Darwin mudou para “soprados pelo Criador” (DARWIN, 1860).
Richard Owen (1804–1892) foi o mais eminente zoólogo, anatomista e paleontólogo inglês da época de Darwin. Seu legado nos estudos de anatomia comparada de invertebrados e de vertebrados e de fósseis é fenomenal. Foi ele quem criou o termo “dinossauro”. Também foi ele o responsável pela construção do Museu de História Natural de Londres e pelo conceito atual de museu como uma instituição de exibição e de educação para o grande público. Porém, por muitos, e até mesmo por Darwin, Owen foi considerado a pessoa mais odiosa, ardilosa e enganadora. Por causa de seu egocentrismo, não deixou nenhum discípulo. Era conhecido também pelo seu desprezo, desconsideração e, até mesmo, por ter se apropriado do trabalho de outros cientistas e pelas intrigas e disputas pelo poder. Ainda que seus estudos indicassem uma modificação das espécies ao longo dos tempos, Owen foi o principal adversário de Darwin e crítico da evolução por seleção natural após a publicação do livro A origem das espécies.
A consequência óbvia de tanto alarde foi o aumento da curiosidade sobre o livro. A origem das espécies estava nas ruas sendo amplamente consumido. As 1.250 cópias esgotaram-se rapidamente e, no início de dezembro, outras 3.000 estavam sendo impressas para atender à crescente demanda. Em maio de 1860, o livro já estava sendo publicado nos Estados Unidos (DESMOND; MOORE, 1992).
Apoio também não faltou. Huxley e Hooker escreveram críticas em jornais enaltecendo o livro. O antigo professor de Darwin em Edimburgo, Robert Grant, dedicou um livro a Darwin com o comentário: “Com um rápido toque da varinha da verdade, você espalhou aos ventos os vapores pestilentos acumulados pelos inventores de espécies”35 (GRANT, 1861, p. VI). No Brasil, o zoólogo alemão Fritz Müller escreveu a marcante apologia Für Darwin, que mais tarde viria a ser traduzida para o inglês sob o título Facts and arguments for Darwin36. E os debates públicos entre os opositores e defensores do livro estavam por vir, para os quais Huxley estava “afiando seu bico e suas garras”37 (DARWIN, 1887c, p. 232).
Wallace, que veio a ser um dos principais defensores da teoria da evolução e do livro de Darwin, retornou à Inglaterra apenas em 1º de abril de 1862. Encontrou-se com Darwin pouco tempo após sua chegada. Ele ficou profundamente impressionado pelo detalhamento do livro. Em uma carta para Bates comentou (MARCHANT, 1916, p. 73):
Eu não sei como e a quem expressar completamente a minha admiração pelo livro de Darwin. Para ele, parecerá adulação, para outros, autoexaltação; mas eu honestamente acredito que, apesar de toda a paciência com que trabalhei e estudei sobre o assunto, eu nunca teria coberto a amplitude do seu livro – o seu vasto acúmulo de evidências, a sua argumentação avassaladora e o seu admirável tom e espírito. Fico agradecido por não ter sido o responsável por tornar essa teoria pública. O senhor Darwin criou uma nova ciência e uma nova filosofia, e eu acredito que nunca uma ilustração tão completa de um novo ramo do conhecimento foi atribuída ao trabalho e à pesquisa de um único homem. Nunca uma tão vasta gama de fatos, amplamente dispersos e previamente desconexos, foi combinada em um sistema e usada para o estabelecimento de uma filosofia tão grande, nova e simples!38
Cento e cinquenta anos após a publicação do livro A origem das espécies, a teoria da evolução continua sendo rejeitada por uma grande parcela da população humana. Isso ocorre pelo fato de, muitas vezes, existir a crença de que a remoção do homem do berço da criação poderia levar à falta de sentido na vida ou, até mesmo, à perda de valores éticos e morais por parte de nossa sociedade. Darwin temia que essa fosse a forma com que a sociedade reagiria a seu livro. E ela não foi diferente: em novembro de 1859, seu professor Adam Sedgwick, em carta a Darwin, mencionou que “[...] passagens do seu livro, como aquelas às quais aludi (e há outras quase tão ruins), foram um grande choque à minha apreciação moral”39. Ainda apontou que, se as afirmações de Darwin fossem verdade, “[...] a humanidade, a meu ver, sofreria um dano que poderia brutalizá-la e afundá-la ao grau mais baixo de degradação”40. Ao terminar a carta, em tom de ameaça, Sedgwick diz a Darwin que, caso eles agissem em conformidade com as revelações de Deus, eles se “encontrariam no céu”41 (DARWIN, 1892, p. 217-218). Até hoje vemos que a suposta ameaça aos valores éticos e morais continua sendo o principal entrave à aceitação do trabalho de Darwin.
Após a publicação do livro A origem das espécies, Darwin passou o resto de sua vida buscando a aceitação de sua teoria e apresentando respostas a dúvidas e argumentações contra ela. Além de reeditar A origem das espécies e seus livros antes publicados, atualizando o conhecimento e respondendo a críticas, publicou dez novos livros, os quais também procuravam responder a críticas ou dar exemplos de comprovações da evolução (DESMOND; MOORE, 1992). Um desses livros, intitulado On the various contrivances by which British and foreign orchids are fertilised by insects42, foi publicado em 1862. Nele, Darwin buscava mostrar o poder da seleção natural e a coevolução entre as belas cores e formas das orquídeas e sua fertilização por insetos (DARWIN, 1862). Em The descent of man, and selection in relation to sex43, publicado em 1871, Darwin procurava mostrar a evolução do homem e explicar o dimorfismo sexual e a evolução de formas belas e impraticáveis em animais, como as cores dos beija-flores ou o rabo do pavão (DARWIN, 1871, 1874). Nesse livro, também procurou mostrar a evolução da moral e da religião nas civilizações humanas.
O debate na Associação Britânica para o Avanço da Ciência
Monumento comemorativo do debate histórico ocorrido no Museu de História Natural da Universidade de Oxford, Reino Unido, durante a reunião da Associação Britânica para o Avanço da Ciência, em 30 de junho de 1860. No monumento, lê-se: “Em 30 de junho de 1860, Thomas Henry Huxley, Samuel Wilberforce e outros debateram, neste museu, sobre a origem das espécies de Charles Darwin. 1860-2010”. A sala onde foi realizado o debate, por ser muito alta, lamentavelmente foi dividida em dois andares. Hoje o andar de baixo é utilizado como laboratório entomológico do museu; enquanto o andar superior é usado para armazenamento da coleção entomológica
Foto: José Roberto Moreira.
O mais famoso debate entre os opositores e defensores do livro A origem das espécies ocorreu na reunião da Associação Britânica para o Avanço da Ciência, que foi realizada em Oxford, no Museu de História Natural da Universidade, em 30 de junho de 1860. Ainda que, muitas vezes, seja descrito como um conflito entre a religião e a ciência, o debate, na realidade, representou um confronto entre o anglicanismo tradicional e o liberal. Estavam presentes de 700 a mais de 1.000 pessoas (DESMOND; MOORE, 1992). O moderador da reunião foi John Henslow – antigo professor de Darwin. O foco principal era uma palestra de John Draper, professor da Universidade de Nova York, que estava empregando a teoria de Darwin em uma interpretação da sociedade humana civilizada.
O momento mais lembrado é aquele em que Samuel Wilberforce, bispo de Oxford, perguntou a Thomas Huxley se ele considerava que sua ascendência primata era por parte de sua avó ou de seu avô. Huxley respondeu que não se sentia envergonhado de ter um macaco como seu ascendente, mas que sentiria vergonha de estar associado a um homem que usava seus grandes dons para esconder a verdade (DESMOND; MOORE, 1992). Em meio ao furor que emergiu após a zombaria grosseira do bispo e a resposta de Huxley, surgiu o comandante do Beagle, Robert FitzRoy. Então líder do departamento meteorológico do governo, mostrando uma Bíblia, FitzRoy implorou à audiência que “acreditasse em Deus, e não no homem”. Hooker também pediu a palavra e, com argumentos, mostrou que o arrazoado de Wilberforce não se baseava em fatos e que, muito provavelmente, nem mesmo teria lido o livro de Darwin.
Caricatura de Samuel Wilberforce (1805–1873), bispo inglês, renomado orador, que ficou conhecido como forte opositor à teoria da evolução por seleção natural e peça importante no famoso debate ocorrido na Universidade de Oxford.
Darwin era muito sensível à não aceitação de suas ideias. Como sua doença tinha um fundo ligado a estresse e tensão, cada revés que sofria deixava-o prostrado por dias. Quando seu amigo Lyell (1863) publicou o livro The geological evidences of the antiquity of man with remarks on theories of the origin of species by variation44, e fez críticas à teoria da evolução, Darwin passou 10 dias de cama com diarreia, vômitos e fraqueza generalizada (DESMOND; MOORE, 1992). Os reveses foram muitos. Pouco antes da publicação de A origem das espécies, Darwin foi indicado para receber o título de cavalheiro da Rainha pelo seu trabalho em história natural. Com a publicação do livro, Darwin não recebeu o título, especialmente porque um dos conselheiros na escolha das personalidades fora Samuel Wilberforce, bispo de Oxford, um de seus desafetos. Em 1864, Darwin recebeu a medalha Copley, principal prêmio científico concedido pela Sociedade Real de Londres. O processo para sua escolha transcorreu em meio a uma forte disputa entre aqueles que apoiavam ou eram contrários à teoria da evolução. Mesmo tendo recebido o prêmio, sua escolha baseou-se apenas na seguinte razão: “Por suas importantes pesquisas em geologia, zoologia e fitofisiologia”45. Deliberadamente, seu trabalho sobre a teoria da evolução não foi incluído (DESMOND; MOORE, 1992). Apesar de todas as vicissitudes, a teoria de Darwin passou cada vez mais a ser incorporada ao pensamento biológico da época. Em 1866, no encontro da Associação Britânica para o Avanço da Ciência, já era possível ver a teoria da evolução por todas as seções (DESMOND; MOORE, 1992). A teoria estimulou o raciocínio científico da época, e seus discípulos estavam mais determinados a levar adiante suas convicções sem o medo das consequências, diferentemente de seu próprio mestre.
Conflito religião versus evolução: caricatura enviada ao então governador do Estado de Tennessee (EUA), Austin Peay, na década de 1920, relativo ao julgamento de Scopes na cidade de Dayton, no mesmo estado. O julgamento teve repercussão mundial pelo fato de os professores do Condado de Rhea terem desafiado o Butler Act, que proibia o ensino da evolução nas escolas do estado. Na caricatura, o professor de evolução fala para os macacos: “Estou feliz em vê-los, rapazes. Serão apenas alguns dias até que alguns de vocês possam ocupar os primeiros lugares na sociedade. Outros podem levar alguns milhares de anos para ocupar o lugar de chefe de uma grande nação. É um curto espaço de tempo, considerando tantas grandes oportunidades, etc. e tal...” O macaco fala: “Cavalheiros, não deem atenção a esta bobagem. Ele pensa que vocês podem votar. Não o deixe enganá-los a sair da terra dos cocos. Ele quer sobreviver do seu suor. Fiquem onde estão. Vocês não se importam de como chegaram até aqui desde que a colheita de cocos seja boa. Este cara está tentando se fazer às nossas custas. Vocês podem não perceber, mas ele pode ser um promotor de petróleo. Eu digo, tomem cuidado com esse tipo de gente, porque eles vão te enganar”.
Darwin faleceu em sua residência, em Downe, às 16h do dia 19 de abril de 1882. Estava inicialmente planejado que fosse enterrado no adro da igreja de St. Mary, em Downe. Seus amigos, porém, solicitaram que Darwin recebesse honrarias de estado e fosse enterrado na Abadia de Westminster, em Londres. A família inicialmente relutou, mas acabou concordando que essa seria uma maneira de reconhecimento de seu legado para a ciência. Darwin foi enterrado no dia 26 de abril, na Abadia de Westminster, entre os túmulos de Isaac Newton e John Herschel, sob a presença de personalidades internacionais e cientistas. Em sua homenagem, a Sociedade Real decidiu erigir uma estátua de mármore no Museu de História Natural; no entanto, por causa das objeções de Richard Owen (que era o chefe da coleção de história natural do museu), a estátua foi erguida apenas em 1885, após sua aposentadoria (DESMOND; MOORE, 1992).
Abadia de Westminster, em Londres, onde está localizado o túmulo de Darwin. Ele foi enterrado em 26 de abril de 1882 entre os túmulos do físico Isaac Newton e do astrônomo John Herschel. A família queria que ele fosse enterrado na igreja de St. Mary, em Downe, mas, após solicitação pública do parlamento inglês, seu sepultamento ocorreu com pompas de Estado.
Foto: José Roberto Moreira
A teoria da evolução não representou uma simples invenção ou descoberta científica. Representou muito mais – simbolizou uma mudança de paradigma da ciência. Ela criou o paradigma hoje reinante, que organiza a biologia atual e, de alguma maneira, toda a ciência moderna, desvinculando-a do jugo religioso. O livro provocou mudanças no estudo e no ensino da biologia em todo o mundo. A Igreja, que até então era a autoridade máxima em assuntos relacionados à natureza, perdeu terreno, e a ciência tomou o seu lugar na maioria dos países (JONES, 1999).
Argumenta-se também que o livro de Darwin solucionou virtualmente todos os problemas na biologia evolutiva, com exceção da origem da vida. Ainda assim, foram necessários em torno de dez anos para que a maior parte da comunidade científica se convencesse de que a evolução é um fato. Outros cem anos ou mais se passaram antes que a seleção natural fosse amplamente reconhecida como a principal causa da evolução, ainda que não exclusiva (JONES, 1999). Evidências que comprovam a evolução das espécies estão estampadas a olhos vistos no registro fóssil, na distribuição geográfica das espécies, na proximidade genômica entre organismos, nas estruturas comuns entre seres distantes, bem como nas semelhanças relacionadas ao desenvolvimento dos organismos (ver Capítulo 4).
Infelizmente, a teoria da evolução por seleção natural também foi utilizada no apoio a posições filosóficas que promoveram o racismo e a discriminação. Baseadas no princípio (errôneo) segundo o qual “o mais forte sobrevive”, essas filosofias promoveram a ideia de que algumas raças humanas eram superiores a outras e, assim, estariam destinadas a subjugá-las. Alguns estenderam o pensamento evolutivo à microeconomia e argumentavam que programas de apoio social que ajudavam os pobres e os deficientes eram contrários à natureza. O pensamento evolutivo foi até mesmo utilizado em defesa do Holocausto e do extermínio das “raças inferiores”. Porém, é importante apontar que Darwin não estendeu sua teoria aos níveis social e econômico. A interpretação utilizada por tais filosofias são marginalmente baseadas na teoria da evolução, por meio de interpretações grotescas e equivocadas sobre os mecanismos evolutivos (STIX, 2009)
Raça caprina brasileira Moxotó (A) e o ancestral selvagem dos caprinos, no caso a cabra da Ilha de Creta (B), Grécia. O conhecimento evolutivo permite que se compreendam as relações entre raças domésticas de animais e seus parentes selvagens.
Foto A: Luiz Gonzaga Pinto de Queiroz
Foto B: Klaus Rudloff
Mesmo que amplamente reconhecida pela comunidade científica, a evolução por seleção natural continua sendo uma teoria correntemente rejeitada e atacada por um significativo segmento da sociedade, especialmente os fundamentalistas religiosos. Muitos grupos religiosos da atualidade, porém, aceitam que a evolução biológica tenha produzido a diversidade de seres pelos bilhões de anos da história desse planeta. Entre as recentes posições contrárias à teoria da evolução está o design inteligente, que tenta dar uma roupagem científica ao criacionismo. Porém, nenhum desses argumentos foi aceito para publicação em revistas científicas indexadas submetidas a revisores externos, além de serem rejeitados pela comunidade científica e considerados como pseudociência (NATIONAL ACADEMY OF SCIENCES, 1999). Em 1646, o físico e religioso francês Blaise Pascal (1862, p. 383-384), ao comentar sobre a cegueira religiosa na condenação de Galileu, escreveu:
[...] se tivermos observações constantes provando que é ela [a Terra e não o Sol] que está girando, o esforço de todos os homens juntos não a impedirão de girar, e nem mesmo que também giremos com ela.46
A história se repete. A descrença na evolução não fará que o homem deixe de ser descendente de um ancestral comum a todos os outros organismos da face da Terra. E isso é um fato!
Diante da importância da teoria da evolução, pode-se dizer que nossa sociedade não pode viver sem ela. Ela é a “gramática” do mundo natural e o meio pelo qual podemos lê-lo e compreendê-lo. Pesquisas recentes sobre evolução molecular e especiação comprovam tanto a visão de Darwin-Wallace, segundo a qual a seleção natural comanda grande parte da evolução, quanto a consequente concepção de que, muitas vezes, ela também leva à separação entre espécies. Nossa sociedade e nosso sistema educacional estarão mais bem servidos se continuarmos ensinando ciência nas escolas, e não pseudociência de base religiosa. Esse pequeno detalhe pode determinar o desenvolvimento tecnológico e seus efeitos sobre o futuro da nossa sociedade. Essas pseudociências apenas buscam justificar o desconhecido como prova da ação e existência de uma divindade. Entretanto, como o escritor e cientista americano Isaac Asimov (1984, p. 184) apontou:
Há muitos aspectos do universo que a ciência ainda não pode explicar satisfatoriamente; mas o desconhecimento implica apenas desconhecimento que um dia poderá ser superado. Render-se ao desconhecimento e chamá-lo de “Deus” sempre foi um ato prematuro e continua sendo um ato prematuro hoje.47
“Nada na biologia faz sentido exceto sob a luz da evolução”48. Essa declaração, feita pelo geneticista ucraniano Theodosius Dobzhansky (1964), não deixa margem para dúvidas sobre a importância da teoria da evolução. O conhecimento sobre a evolução da vida na Terra encontra-se no âmago de disciplinas como: genética, bioquímica, biotecnologia, neurobiologia, ecologia, morfologia, fisiologia e, até mesmo, inteligência artificial. Hoje, os benefícios que o conhecimento evolutivo traz para a sociedade encontram-se por toda parte. Toda a base da biologia moderna está fundamentada no conhecimento evolutivo, que abriu as portas para a criação de novas pesquisas médicas, no intuito de explicar o surgimento de novas doenças e os mecanismos de resistência a antibióticos ou antivirais, bem como para o progresso da farmacologia. Assim, permitiu o crescimento de tecnologias que ajudam na prevenção e na luta contra doenças. Além disso, orientou o conhecimento para a melhoria do controle de pragas na agricultura, e permitiu que se compreendessem as relações entre plantas e animais domésticos com seus parentes selvagens bem como o desenvolvimento de tecnologias que promovam o melhoramento de plantas e animais (ver Capítulo 7). Permitiu-nos conhecer, ainda, o mecanismo molecular das células, a herança de doenças geneticamente transmissíveis e as similaridades entre o homem e seus parentes primatas. Essas similaridades genéticas indicam um passado de ligação entre espécies que são hoje muito diferentes. O conhecimento evolutivo permite, também, que tenhamos ciência não somente dos erros que temos cometido nos últimos milhares de anos de nossa existência na Terra, mas também das ações que devem ser implementadas para evitar um futuro sombrio.
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