Capítulo 3

Mecanismos de evolução

Artur Jordão de Magalhães Rosa

José Roberto Moreira

3%20Abertura%203.jpgRaposa-vermelha (Vulpes vulpes) captura um esquilo-do-Ártico (Spermophilus parryii) na luta pela vida entre predador e presa, em Whitehorse, Yukon, Canadá.

Foto: Keith William

"Parece-me que a 'Origem da Variação', seja lá o que isso for, é a única e verdadeira 'Origem das Espécies'." (BUTLER, 1910, p. 263).

“To me it seems that the ‘Origin of Variation’, whatever it is, is the only true ‘Origin of Species’.”

Os mecanismos de evolução pensados por Darwin

Em 1858, Darwin e Wallace introduziram na ciência a ideia radical de que a mudança evolutiva em qualquer linhagem seria amplamente conduzida por seleção natural (GHISELIN, 2008). Mais do que isso, Darwin, em seu livro A origem das espécies, publicado no ano seguinte, defendia a ideia de que seleção natural causa a separação das espécies. Ele sintetizou a teoria da evolução por seleção natural da seguinte maneira (DARWIN, 1859, p. 63 e 80-81):

[...] Assim, como o número de indivíduos gerados é maior do que a capacidade para sobrevivência, deverá haver, para cada caso, a luta pela existência: tanto de um indivíduo com outro da mesma espécie, quanto com indivíduos de espécies distintas, ou ainda com as condições ambientais de vida. [...] Pode-se assim considerar improvável, observando que ocorreram (sem dúvida) variações úteis ao homem [na seleção artificial], que, no decorrer de milhares de gerações, devem algumas vezes acontecer outras variações de alguma maneira benéficas a cada ser na grande e complexa batalha pela vida? Se tal fato realmente ocorre, seria possível duvidar (lembrando que nascem muito mais indivíduos do que podem sobreviver) que indivíduos com qualquer vantagem sobre outros, ainda que pequena, teriam maior chance de sobrevivência e de procriação da sua espécie? Entretanto, talvez possamos afirmar que qualquer variação deletéria mínima será rigorosamente destruída. Essa preservação de variações favoráveis e a rejeição de variações prejudiciais eu chamo de Seleção Natural.1

Desde quando se tornou um evolucionista, em 1837, Darwin procurou identificar os mecanismos que direcionavam a evolução das espécies. Em seu pensamento, a forma de atuação da evolução estava baseada nas seguintes evidências (DARWIN, 1859):

A partir dessas evidências, constata-se não somente que existe variação nas características dos indivíduos e, consequentemente, em sua capacidade de adaptação, mas também que elas são herdadas pelos descendentes dos indivíduos sobreviventes, o que provoca alterações na população original ou, até mesmo, dá origem a novas espécies com o passar das gerações. A teoria apresentada por Darwin e Wallace é simples, é facilmente constatada e evoca o senso comum.

A principal força motora da evolução proposta por Darwin consistia na seleção natural. Em seu livro, Darwin propôs a ideia de “descendência com modificação por meio de seleção natural”2, o que leva a entender que a seleção natural é a “causa” da descendência com modificação. Ainda que Darwin, com a publicação de A origem das espécies, tenha conseguido convencer os cientistas da época a respeito da existência da evolução, não teve o mesmo sucesso no convencimento de que a seleção natural seria o seu principal mecanismo (DESMOND; MOORE, 1992). Darwin definiu evolução como descendência com modificação. Entretanto, ele não pôde explicar a fonte das variações entre indivíduos e a transmissão desses caracteres para a próxima geração. Chegou a pensar que os caracteres fossem herdáveis pelo uso e desuso, ideia errônea lançada por Jean Baptiste de Lamark e, até mesmo, anteriormente sugerida por Erasmus Darwin, seu avô, no século XVIII. Buscando explicar a herança de caracteres, Darwin chegou a criar uma teoria que chamou de pangênese (ver Capítulo 2), segundo a qual machos e fêmeas produzem “pangenes” em todos os órgãos, que se movem através do sangue para os órgãos genitais, e por meio deles são transmitidos a seus descendentes (DARWIN, 1874).

Em seu livro The descent of man, and selection in relation to sex [A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo] (1871), Darwin apresentou seu hipotético mecanismo de hereditariedade – a pangênese. Nela, em todos os estágios do desenvolvimento, as células componentes de organismos multicelulares dispersariam gêmulas por todo o corpo, as quais se desenvolveriam e formariam células como as de seus antecessores. As gêmulas seriam coletadas em grupos pelos órgãos reprodutivos de acordo com a afinidade mútua. Um novo organismo seria criado quando dois desses agrupamentos de gêmulas se combinassem. A hipótese deixa aberta a ideia de herança de caracteres adquiridos.

Obviamente, sem os conhecimentos de genética que lhe faltavam à época, não haveria como saber que a seleção natural não é a causadora da “descendência com modificação”. Darwin não tinha a menor ideia de como os mecanismos pelos quais os caracteres de um organismo que teve sucesso em sua sobrevivência em uma geração eram passados para seus descendentes. Apenas em 1900, foi redescoberto o trabalho publicado em 1865 por um monge austríaco (Gregor Mendel), no qual foram apresentados os mecanismos desconhecidos por Darwin. Por meio de seu trabalho sobre o cruzamento entre variedades de ervilhas, Mendel descobriu os padrões de hereditariedade e segregação de caracteres dominantes e recessivos recombinantes (RIDLEY, 2004). O mais relevante salto na compreensão dos mecanismos da evolução, porém, deu-se na década de 1950, com a descoberta do ácido desoxirribonucleico (DNA). Hoje, o DNA está no centro da nossa compreensão da evolução, porque é nele onde realmente ocorre o controle da expressão e da herança dos caracteres.

Com o progresso da ciência, alguns dos pensamentos de Darwin foram rejeitados, lacunas em suas ideias e teorias foram preenchidas e muitas novas linhas de pensamento e evidências foram trazidas à luz. Durante a maior parte do século XX, a incorporação da genética e da biologia populacional aos estudos evolutivos levou a profundas modificações no entendimento dos mecanismos determinantes da evolução biológica. Atualmente se reconhece a importância das mutações como a principal fonte de variação dentro de uma população, enquanto a seleção natural passou a ser reconhecida como um dos processos que alteram a frequência dos alelos em uma população, e isso conceitua a evolução.

Nas últimas décadas, um novo e crescente conhecimento da estrutura e do funcionamento dos genomas tem expandido a percepção das causas e dos efeitos das mutações e da seleção natural sobre a evolução dos organismos. Embora os fatores de mutação, migração, deriva e seleção continuem sendo o cerne da teoria evolutiva, hoje se reconhece a simbiose (interação mutuamente benéfica de diferentes formas de vida), a hibridização (a interação sexual entre diferentes espécies), a transferência horizontal de genes e a epigenética (que envolve a mudança na expressão gênica sem alteração na sequência de DNA) como de importância vital para a evolução.

A atual teoria da evolução, porém, ainda contém os princípios básicos que foram apresentados por Darwin. Esses princípios são:

Este capítulo examina os mecanismos de evolução hoje amplamente reconhecidos e aqueles que recentemente foram aceitos como de relevância para a evolução. Os muitos termos técnicos apresentados são explicados no glossário ao final do livro.

DNA – a molécula replicadora da vida

O início do século XX foi de grande desenvolvimento científico na área da genética. Durante esse período, ocorreu a ligação entre a genética e a evolução. Porém, naquela época, os cientistas ainda não haviam determinado o fato de a proteína não ser o material genético, como chegou a ser cogitado. Entende-se hoje que os caracteres hereditários são transmitidos para as gerações subsequentes por meio do DNA, macromolécula em cadeia dupla antiparalela, composta por quatro diferentes tipos de nucleotídeos, cuja estrutura foi descrita pela primeira vez em 1953 por Watson e Crick. Ainda que um nucleotídeo seja uma pequena molécula, a cadeia de DNA é enorme – um polímero de nucleotídeos contém milhões de pares de bases. Como exemplo disso, o maior cromossomo humano, o cromossomo 1, tem aproximadamente 247 milhões de pares de nucleotídeos (pares de bases) (GREGORY et al., 2006).

O replicador da vida. A estrutura do DNA com os quatro tipos diferentes de nucleotídeos, os pares de bases, a ligação de hidrogênio e um códon.

Uma única molécula de DNA pode conter centenas a milhares de genes (KLUG; CUMMINGS, 1997). Nas células, o DNA está organizado dentro do núcleo em estruturas conhecidas por cromossomos, além de pequenas quantidades em organelas, como mitocôndrias e cloroplastos (ver Capítulo 6). Os cromossomos são constituídos pelo DNA e por proteínas conhecidas por histonas, complexo nomeado como cromatina. Durante a divisão celular, eles se duplicam e segregam para a formação de duas novas cópias. A posição que um determinado gene ocupa no cromossomo é chamada de lócus.

Os genes são a “receita de bolo” para a formação dos indivíduos. Eles contêm as informações para a construção das proteínas, que, por sua vez, catalisam as reações bioquímicas, fornecem componentes estruturais para os organismos e desempenham muitas das funções das quais a vida depende (KLUG; CUMMINGS, 1997). Os genes são unidades funcionais complexas, compostas por uma sequência promotora e por unidades terminais regulatórias (5’UTR e 3’UTR), relacionadas ao controle da expressão das regiões codificadoras (éxons) e não codificadoras (íntrons). O código genético está escrito na forma de trincas de nucleotídeos chamados códons. Cada códon especifica o aminoácido que deve ser adicionado à proteína a ser formada, por intermédio de uma molécula de ácido ribonucleico (RNA) mensageiro (KLUG; CUMMINGS, 1997).

Representação do cromossomo em que se podem ver as histonas, a estrutura de dupla hélice do DNA e um exemplo de gene com íntrons e éxons.

As sequências nucleotídicas do material genético de um indivíduo podem ser alteradas por mutação (gênica ou cromossômica), na qual ocorre modificação da proteína produzida e do caráter controlado pelo gene correspondente. As diversas formas de um gene, as quais podem existir em uma população que ocupa o mesmo lócus de um cromossomo, são chamadas de alelos. As mutações criam variações no gene e levam à geração de novos alelos. Consequentemente, há aumento do pool gênico (conjunto de alelos para os diversos genes) da população. Os diversos alelos transmitidos aos descendentes são determinantes da variação hereditária.

Organismos diploides são aqueles que possuem um conjunto duplo de cromossomos homólogos. Eles geralmente possuem dois alelos para cada gene, um em cada cromossomo homólogo no qual o gene está presente. Desses dois alelos, um foi herdado do pai e o outro da mãe. Os termos homozigoto e heterozigoto são utilizados para descrever o genótipo de um organismo diploide para um lócus. Indivíduos homozigotos são aqueles que possuem dois alelos idênticos; por sua vez, heterozigotos são organismos que possuem alelos diferentes de um mesmo lócus (gene).

O termo genótipo refere-se a todos os alelos, para cada gene, presentes em um organismo ou, ainda, ao grupo de alelos responsáveis pela determinação da expressão de uma característica em particular (fenótipo). No caso de características monogênicas (determinadas por um gene somente), como a textura da semente de ervilhas, estudada por Mendel, os organismos podem apresentar dois alelos (L = liso e = rugoso) e, consequentemente, três genótipos (LL, LR e RR). Como explicado anteriormente, os indivíduos LL e RR são homozigotos, lisos e rugosos, respectivamente, enquanto os LR são heterozigotos. Uma vez que os indivíduos heterozigotos expressam o fenótipo semente lisa, idêntico ao genótipo LL, considera-se o alelo L dominante e o alelo R recessivo.

Outro exemplo seria o sistema sanguíneo ABO em humanos com três alelos (IA, IB e i). Nesse sistema, os alelos IA e IB são codominantes (ambos os alelos IA e IB são expressos no heterozigoto IAIB) e são dominantes em relação ao alelo i (heterozigotos IAi e IBi apresentam os fenótipos A e B, respectivamente), enquanto indivíduos com dois alelos recessivos ii apresentam o fenótipo tipo O (MAYNARD SMITH, 1989).

Alelos do grupo sanguíneo do sistema ABO

IA

IB

i

Genótipos e Fenótipos possíveis

Genótipos

Fenótipos

IA IA ou IA i

A

IB IB ou IB i

B

IA IB

AB

ii

O

O lócus para os grupos sanguíneos do sistema ABO pode conter três alelos diferentes: além dos genes codominantes IA e IB, existe um gene recessivo i.

Todas as características observáveis de um organismo (sejam elas físicas ou comportamentais) representam seu fenótipo, o qual é influenciado tanto pelo genótipo (conjunto de alelos para cada gene) quanto pelas condições do ambiente (FUTUYMA, 1986). Uma vez que os fenótipos, para a maioria das características, podem ser influenciados tanto pelo genótipo quanto pelo ambiente, nem todas as características apresentadas por um indivíduo podem ser transmitidas aos seus descendentes. Por exemplo, o guará (Eudocimus ruber), ave de manguezais do litoral brasileiro, possui coloração vermelho-brilhante pelo fato de alimentar-se de pequenos crustáceos (fontes do carotenoide cantaxantina), e não unicamente por causa de seus genes. Indivíduos em cativeiro que não recebem tal alimentação apresentam coloração apenas rósea. Alterações no ambiente em que vive o guará podem afetar seu fenótipo. Por sua vez, o melanismo (pelagem negra) que ocorre em alguns indivíduos de onça-pintada (Panthera onca) é um caráter hereditário dominante determinado pelos seus genes (EIZIRIK et al., 2003). Em outras palavras, a coloração da pelagem da onça-pintada é determinada exclusivamente por seu genótipo, ou seja, indivíduos possuidores de um alelo modificado do gene MC1R (receptor da melanocortina 1) apresentarão coloração de pelagem negra, e essa característica poderá ser transmitida aos seus descendentes (EIZIRIK et al., 2003).

Atualmente, com a finalização do sequenciamento de diversos genomas e com o aumento no entendimento de seu funcionamento, denomina-se gene uma unidade funcional a qual não produz necessariamente proteínas (como enzimas responsáveis pelo metabolismo, por exemplo). Muitas vezes, os genes codificam para RNAs que atuam na regulação da expressão gênica ou simplesmente possuem um papel estrutural essencial para o correto funcionamento do genoma.

Teoria da síntese evolutiva

Uma das teorias evolucionárias mais aceitas atualmente, resultante da integração da genética e da biologia populacional com a evolução proposta por Darwin, é conhecida por teoria da síntese evolutiva (MAYR, 2001). Foi desenvolvida a partir dos trabalhos de Darwin e Mendel e, posteriormente, pelo trabalho teórico de R. A. Fisher, S. Wright e J. B. S. Haldane, além dos trabalhos conceituais de J. Huxley, T. Dobzhansky, H. J. Muller e outros (ver Capítulo 2).

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Diferenças no ambiente podem produzir diferentes fenótipos. A coloração do guará (Eudocimus ruber) depende de sua alimentação. Quando consome pequenos crustáceos em ambiente natural, sua coloração é vermelho-brilhante (A); quando privado dessa dieta, torna-se rósea (B).

Foto A: Dominic Sherony

Foto B: José Roberto Moreira

De acordo com os princípios dessa teoria, a evolução é o processo de modificações sofridas por populações de organismos ao longo das gerações, que pode ser entendido como alterações nas frequências gênicas e genotípicas, em decorrência da atuação das forças evolutivas: mutação, migração, deriva genética e seleção. As forças evolucionárias serão objeto de discussão neste capítulo, mas podem ser descritas sucintamente da seguinte forma: mutação é a fonte primordial de novas variantes genéticas e, apesar de a maioria das mutações ser deletéria ou neutra, algumas podem ter efeito positivo na adaptação do organismo. Migração é o processo pelo qual novos alelos podem ser introduzidos em uma população a partir de outra, enquanto deriva genética refere-se a alterações aleatórias nas frequências alélicas que afetam principalmente populações de tamanho reduzido. Darwin apresentou a seleção natural como “o mecanismo” de evolução. Atualmente, seleção natural é entendida como o processo pelo qual a natureza, por um lado, favorece a sobrevivência e o desempenho reprodutivo dos indivíduos possuidores de alelos favoráveis e, por outro lado, afeta negativamente aqueles possuidores de alelos prejudiciais. Dessa forma, ela altera as frequências gênicas e genotípicas e leva à maior adaptação das populações ao seu ambiente (RIDLEY, 2004).

Diferenças no genótipo também podem produzir diferentes fenótipos. Os genes para coloração da pelagem da onça (Panthera onca) fazem dela pintada ou melânica. A variação na frequência desses genes em uma população pode ser um exemplo de microevolução.

Fotos: Conwest John

A evolução abrange mudanças em muitas diferentes escalas. Tanto pode conter algo tão insignificante como o aumento na frequência de genes para a coloração da pele de uma onça em uma população de uma geração para outra, quanto pode envolver algo tão formidável como a evolução e radiação dos carnívoros. Esses dois extremos representam exemplos de micro e de macroevolução, respectivamente. A microevolução é consequência da ação das forças regulares da evolução dentro de populações, que resulta no aumento de sua adaptação. Já a macroevolução refere-se à especiação, extinção e diversificação de diferentes espécies de organismos. Ela é decorrente do efeito acumulado das mesmas forças evolutivas que agem para a microevolução e ocorre em tempo e escala que superam milhões de anos (RIDLEY, 2004).

Macroevolução – evolução e radiação da ordem Carnivora (apresentada por suas diferentes famílias), da qual a onça faz parte (família Felidae). No exemplo, o posicionamento das divergências entre os diferentes taxa não está relacionado ao número de mutações nem à escala de tempo geológico, apenas à sua relação filogenética.

Conforme descrito anteriormente, os quatro componentes essenciais da evolução, para a teoria da síntese evolutiva, são: mutação, migração, deriva genética e seleção. Por razões didáticas, agregando mecanismos associados e buscando incorporar novos mecanismos atualmente reconhecidos como importantes para a evolução, os mecanismos de mudança evolutiva foram divididos nos seguintes itens, os quais serão discutidos neste capítulo: variação genética, fluxo gênico, efeitos estocásticos em populações de tamanho reduzido e seleção natural.

Variação genética

Existem basicamente dois mecanismos geradores de variação genotípica populacional: novos polimorfismos (alelos) podem surgir a partir de mutações no material genético original, enquanto novas combinações alélicas (genótipos) podem surgir a partir da recombinação genética durante a reprodução sexual (KLUG; CUMMINGS, 1997). Por sua vez, o destino de um alelo modificado é determinado pela sua vantagem adaptativa ou, ainda, por efeitos estocásticos que podem ter origem na intensidade de migração entre populações (fluxo gênico) e na deriva genética, que serão tratados nas próximas seções. Esses são os mecanismos que aumentam ou diminuem as frequências alélicas ou genotípicas de uma população (KLUG; CUMMINGS, 1997).

Mutações

Mutações genéticas são mudanças estruturais no DNA. Uma simples alteração em um nucleotídeo de um DNA pode ter um grande efeito, mas, na maioria dos casos, a mudança evolutiva está baseada no acúmulo de muitas mutações (KLUG; CUMMINGS, 1997). Mutações somáticas afetam as células de um organismo e podem, por exemplo, causar câncer, porém não são transmissíveis à próxima geração. Para serem transmitidas, elas precisam acontecer na linhagem germinativa durante a formação dos gametas masculinos ou femininos. A frequência de mutação nas células sexuais humanas varia de 1/10.000 a 1/1.000.000 para qualquer gene específico. Assim espera-se que a maioria das células sexuais humanas (espermatozoides ou óvulos) contenha, pelo menos, uma mutação genética.

As mutações ocorrem naturalmente como resultado de alterações ocasionais na sequência do DNA durante sua duplicação antes da divisão celular ou por erros de pareamento dos cromossomos homólogos durante a divisão celular. O DNA pode sofrer quebras em uma ou em ambas as cadeias de nucleotídeos, em razão da ação de mutagênicos ambientais, como radiações iônicas ou ultravioleta, toxinas, hidrocarbonetos, agentes quimioterápicos, etc. Vírus e microrganismos também podem ser responsáveis por essas alterações (KLUG; CUMMINGS, 1997). A mutação é a única fonte de variação alélica, material básico da evolução. Ela é o único meio pelo qual novos alelos são criados. Isso pode parecer um paradoxo, pois a grande maioria das mutações que observamos é prejudicial (aproximadamente 70%) ou neutra (não propicia vantagem ou desvantagem alguma ao organismo), enquanto uma fração muito pequena possui efeito favorável no que se refere à adaptação (RIDLEY, 2004).

Tipos de mutação

Uma mutação é uma alteração na sequência de DNA de um gene. Geralmente ocorre durante a replicação do DNA, mas pode ser rapidamente reparada. Assim, uma mutação também pode ser definida como o insucesso no reparo de um erro na replicação do DNA. As taxas de mutação também podem ser elevadas por radiações, produtos químicos, vírus e transpósons. Podem ser classificadas em mutações gênicas ou cromossômicas (KLUG; CUMMINGS, 1997).

A. Mutações gênicas

1. Substituição

A substituição é um tipo de mutação que troca um nucleotídeo por outro.

Uma substituição altera somente um códon e, consequentemente, um aminoácido a ser incorporado à proteína. Essa alteração geralmente provoca pequenas modificações na proteína, mas podem determinar que a proteína produzida fique incompleta.

SUBSTITUICAO.eps

2. Inserção

É um tipo de mutação que introduz um grupo de nucleotídeos em uma nova localização do DNA.

INSERCAO.eps

3. Deleção

Elimina um grupo de nucleotídeos em uma seção do DNA.

A inserção e a deleção alteram o quadro de leitura e podem produzir proteína incompleta ou com função alterada. Ao contrário da substituição, que altera um códon, as inserções e as deleções, que não sejam em número de nucleotídeos múltiplo de três, alteram todos os códons subsequentes ao local da mutação. Essa mudança no quadro de leitura geralmente cria um códon de terminação precoce e, consequentemente, uma proteína incompleta ou truncada, ou altera completamente a mensagem anteriormente transmitida pelo gene. Por exemplo, na frase “Pão com ovo sem sal”, em que cada palavra representa um códon, se retirarmos a primeira letra e reagruparmos em trincas como nos códons, a frase resultante (“Ãoc omo vos ems al”) não tem significado algum.

DELECAO.eps

B. Mutações cromossômicas

1. Inversão

Inverte a orientação de um segmento do cromossomo.

INVERSAO.eps

2. Duplicação

É um tipo de mutação que gera múltiplas cópias de uma região do DNA, e também multiplica os genes ali localizados.

DUPLICACAO.eps

3. Translocação

A mutação por translocação troca partes genéticas de cromossomos não homólogos. A síndrome de Down é uma desordem genética humana que pode ser causada pela translocação de parte do cromossomo 21 para o cromossomo 14.

TRANSLOCACAO.eps

Vários podem ser os tipos de mutação, os quais podem ser agrupados em mutações gênicas ou mutações cromossômicas. Essas variações genéticas contribuem de maneira diferenciada no processo evolutivo, e a seleção natural determina a direção da evolução para as variantes genéticas mais favoráveis à adaptação requerida (FUTUYMA, 1986). As mutações com ação no gene (mutações gênicas) têm efeitos de pequena escala na sequência de ácidos nucleicos. Elas são resultado de substituições, inserções e deleções de nucleotídeos ou de rearranjo de segmentos de genes (KLUG; CUMMINGS, 1997). Geralmente, as mutações gênicas podem alterar a proteína produzida ou gerar proteínas incompletas pelo surgimento de códons terminais. Por sua vez, mutações nos cromossomos (mutações cromossômicas) envolvem grandes rompimentos do material genético. Cromossomos são alterados durante as fases de duplicação do DNA e de divisão celular por deleção, duplicação, inversão, recombinação, translocação, transposição e não disjunção meiótica (KLUG; CUMMINGS, 1997). Contra as mutações gênicas, as células desenvolveram mecanismos de reparo do DNA, como reversão direta, reparo de quebra de bases, reparo de quebra de nucleotídeos e reparo de pareamento errôneo. Nem sempre o reparo é feito de maneira perfeita. Nesse caso, a mutação pode ser transmitida à descendência.

A transposição é um processo pelo qual sequências de DNA podem se mover para diferentes posições no genoma de uma célula. Essas sequências móveis de DNA são chamadas de transpósons. Esses elementos de transposição foram inicialmente descritos como elementos genéticos móveis e representam uma grande parte do genoma de várias espécies de eucariotos, especialmente vegetais e animais. Por não serem conhecidas suas funções em um organismo, foram inicialmente chamados de junk DNA (“DNA lixo”). Entretanto, esses elementos possuem papel primordial no controle da expressão gênica durante o desenvolvimento de um organismo, além de exercerem enorme influência na evolução por causa de seu caráter dinâmico (KLUG; CUMMINGS, 1997). De acordo com seus mecanismos de transposição, os elementos genéticos móveis podem ser agrupados em transpósons e retrotranspósons. Estes últimos são primeiramente transcritos em RNA e, posteriormente, são convertidos por transcrição reversa em cDNA para serem inseridos em outro local no genoma. Os transpósons, por sua vez, são transferidos diretamente de uma posição para outra no genoma pela ação de transposases. Retrotranspósons e transpósons apresentam os mecanismos descritos como “copia e cola” e “corta e cola”, respectivamente.

Replicação de DNA: a dupla hélice é desenrolada, separada e duas novas cópias são formadas. O esqueleto de fosfato-desoxirribose é representado pelas faixas em vermelho, e as bases de hidrogênio pelas barras em amarelo e verde.

Em virtude do fato de se moverem ao longo do genoma, esses elementos podem promover o aumento da diversidade genética, por gerarem mutações nos locais de inserção. Além disso, podem provocar duplicações gênicas e cromossômicas com consequente aumento no tamanho do genoma. Pelo fato de transpósons e vírus partilharem algumas características na estrutura de seus genomas, especula-se que tenham um ancestral comum.

É possível que mutações consideradas prejudiciais, caso ocorressem em um gene único, sejam toleradas em genes duplicados. A duplicação cromossômica é outra importante fonte de novos genes. É estimado que, a cada milhão de anos, de dezenas a até milhares de genes sejam duplicados nos genomas animais. Análise de genomas revelou que, em todos os organismos, há sempre famílias de genes (algumas grandes e várias pequenas) com ancestralidade comum (RIDLEY, 2004). Novos genes também são produzidos pela recombinação de partes de diferentes genes. Mutações cromossômicas devem ter tido papel importante na especiação entre populações contíguas pela aceleração na divergência genética. Esses novos arranjos de cromossomos podem promover isolamento reprodutivo entre populações, preservando assim suas diferenças genéticas (KLUG; CUMMINGS, 1997).

Recombinação

A reprodução sexuada é uma grande fonte de variação genética, pois na produção dos espermatozoides e óvulos ocorre regularmente a recombinação genética. Esse é o processo pelo qual ocorre troca de material genético entre cromossomos homólogos, quando os alelos herdados dos genitores são embaralhados (recombinados) durante a divisão celular na formação dos gametas (KLUG; CUMMINGS, 1997).

Durante o crescimento do organismo ou na reprodução assexuada, o processo de divisão celular produz duas células com o mesmo número de cromossomos da célula de origem. Nesse processo, conhecido por mitose, uma célula diploide (2n) produz duas células diploides. Já o processo de divisão celular, conhecido por meiose, produz células reprodutivas (gametas) com metade do número de cromossomos da célula inicial (células haploides = n). Isso permite que, após a fertilização, o novo organismo gerado não tenha o dobro dos cromossomos dos genitores. Dessa forma, evita-se um crescimento infinito do número de cromossomos nas células dos organismos após a reprodução sexuada.

polipio

Diagrama das fases meióticas na formação de células sexuais com herança de dois caracteres, Ss e Yy (também representados por diferentes cores): na interfase, ocorre a duplicação do DNA; no início da meiose I, durante a prófase I, acontece o entrecruzamento (crossing-over); na meiose I, os pares de homólogos da célula diploide se separam e formam duas células haploides; na meiose II, a divisão é semelhante à divisão mitótica, e são produzidas quatro células haploides. São apresentadas as duas combinações possíveis de ocorrer durante a meiose, para uma herança de dois caracteres.

A preservação do tamanho do genoma de organismos de reprodução sexuada não é o único benefício da meiose. Ela também proporciona três mecanismos para a diversificação dos genomas dos descendentes: a fertilização (reprodução sexuada), a segregação independente dos alelos de um gene e a recombinação gênica ou entrecruzamento (crossing-over). A meiose se desenvolve em diversas etapas. Na primeira delas, denominada prófase I, os cromossomos homólogos ficam emparelhados. É nesse momento que pode acontecer o entrecruzamento, no qual cromossomos homólogos trocam seções cromossômicas (KLUG; CUMMINGS, 1997). O entrecruzamento deve ser bem preciso para que não ocorra ganho ou perda de genes. Os segmentos trocados (procedentes dos dois genitores) são semelhantes (possuem os mesmos genes em cada loci), mas podem carregar diferentes alelos.

O entrecruzamento (crossing-over), onde ocorre troca de seções de cromátides homólogas e a recombinação durante a meiose. Uma célula diploide (2n) produz quatro gametas haploides (n).

Alelos de diferentes genes são combinados independentemente durante a formação dos gametas na meiose, quando não estão em ligação (localizados próximos no mesmo cromossomo). Ainda que ao final da meiose cada gameta contenha apenas um cromossomo homólogo, o número de combinações possíveis entre os homólogos paternos e maternos é função do número de cromossomos da espécie (igual a 2n, em que n = número haploide de cromossomos). Esse processo ajuda no aumento da diversidade genética pela produção de novas combinações (KLUG; CUMMINGS, 1997). Como exemplo, para os gametas humanos, com 23 pares de cromossomos, podem ser produzidas 223 (8.388.608) combinações diferentes de cromossomos. Se acrescentarmos a ocorrência de entrecruzamento nesses cromossomos, nenhum deles é puramente paterno ou materno. É possível concluir que, dos bilhões de espermatozoides que um homem produz durante sua vida (e centenas de ovos produzidos pela mulher), nunca dois tiveram exatamente a mesma combinação de alelos para os diversos genes.

Durante a fertilização, a união do gameta masculino com o feminino permite que a nova célula gerada seja outra vez diploide (n + n = 2n). O descendente possui uma combinação de alelos para os diversos genes (genótipo) completamente diferente da dos seus genitores, ainda que carregue seus genes (KLUG; CUMMINGS, 1997). Reunindo esses três mecanismos presentes na reprodução sexuada (fertilização, segregação independente e entrecruzamento), pode-se concluir que, muito provavelmente, nunca existiram na face da Terra dois indivíduos humanos com o mesmo genoma (a não ser os gêmeos idênticos).

Diferentes combinações de cromossomos em gametas quando o número haploide é igual a 3 (23 = 8).

A recombinação genética pode não ter efeito algum na variação alélica em uma população; entretanto, permite novas combinações genotípicas. Está claro que pode introduzir novas combinações genotípicas a cada geração, porém pode também quebrar boas combinações de genes. Acredita-se que esse embaralhamento de genes da reprodução sexuada, associado à seleção, tenha muitas vantagens para a evolução biológica, como a remoção de mutações prejudiciais e a manutenção de mutações benéficas (KLUG; CUMMINGS, 1997).

Em uma população, algumas combinações de alelos acontecem com uma frequência maior ou menor que a esperada. Isso é digno de nota considerando-se que os alelos segregam de maneira independente durante a meiose. Significa que alelos de genes que se encontram próximos em um cromossomo nem sempre são separados durante a meiose e, consequentemente, podem ser herdados juntos (RIDLEY, 2004). Dessa forma, considera-se que eles estejam em ligação (linkage). A recombinação permite que alelos em ligação sejam herdados independentemente.Porém, a taxa de recombinação entre dois loci em ligação é menor quanto menor for a distância entre eles.

Fluxo gênico

As populações evoluem em decorrência da mudança na frequência gênica em seus indivíduos, que é causada, entre outros mecanismos, pelo fluxo gênico (RIDLEY, 2004). A emigração ou imigração de indivíduos férteis ou gametas (pólen) entre populações fazem que elas ganhem ou percam alelos. O movimento de genes altera o pool gênico de uma população com a introdução de novos alelos, e isso aumenta a variabilidade e possibilita novas combinações de caracteres.

O fluxo gênico também pode ocorrer entre espécies de forma horizontal, por meio de vírus e plasmídeos, por exemplo, o que é frequente entre procariotos e outros microrganismos. A esses mecanismos de fluxo gênico que não envolvem reprodução sexuada ou assexuada (produção de descentes com modificação) dá-se o nome de transferência gênica.

Migração

A imigração (entrada de indivíduos em uma população) e a emigração (saída de seus indivíduos) podem alterar as frequências alélicas de uma população. A entrada de novos indivíduos pode resultar na adição de novo material genético e, consequentemente, no aumento do pool gênico de uma população, enquanto a emigração resulta na sua redução (RIDLEY, 2004).

Uma população com alta variabilidade genética possui maior capacidade de adaptação e, consequentemente, maior resistência contra a extinção. As chances de uma população com baixa variabilidade genética apresentar indivíduos resistentes a uma nova doença ou a alterações ambientais, fatores que poderiam levar a população à extinção, são menores do que se ela apresentasse alta variabilidade. O fluxo gênico entre duas populações aumenta a variabilidade genética de ambas e a semelhança entre elas, e isso reduz o processo de especiação (RIDLEY, 2004). Barreiras reprodutivas (físicas ou genéticas) que interrompam o fluxo gênico entre duas populações são necessárias para que elas se transformem em espécies distintas (ver Capítulo 5).

Transferência gênica

A transferência gênica é definida como a movimentação de material genético através dos limites entre espécies (KEELING; PALMER, 2008). Nela incluem-se a transferência horizontal de genes e a formação de organismos híbridos. Os vírus também carregam DNA não viral entre organismos, o que permite a transferência até mesmo entre espécies de domínios distintos.

O cruzamento entre duas espécies próximas pode dar origem a organismos híbridos. Geralmente esses híbridos interespecíficos são estéreis, pois os pares de cromossomos não segregam perfeitamente na formação dos gametas durante a meiose (RIDLEY, 2004). Essa esterilidade pode ser evitada pela formação de poliploides, que possuem dois ou mais conjuntos de cromossomos (triploide = 3n, tetraploide = 4n, etc.). A poliploidia é muito comum em plantas, especialmente nas angiospermas. Acredita-se que de 30% a 70% das angiospermas atuais sejam poliploides. Com relação ao café (Coffea arabica), que é um exemplo de planta poliploide, são conhecidas plantas com 22, 44, 66 e 88 cromossomos. O cruzamento entre uma planta tetraploide com uma diploide da mesma espécie dá origem a um organismo triploide estéril. Entretanto, indivíduos tetraploides podem cruzar entre si. Quando isso ocorre, passa a existir isolamento reprodutivo e uma nova espécie é formada em apenas uma geração (RIDLEY, 2004). A poliploidia é rara entre animais e, por vezes, é encontrada em insetos, peixes e répteis.

Nos últimos anos, descobriu-se que a transferência horizontal de genes é uma importante força evolutiva em microrganismos (BAPTESTE; BOUCHER, 2008). Nesse processo, o material genético de um organismo é incorporado ao de outro sem ser seu descendente. A transferência horizontal de genes, por meio de conjugação, transdução viral, transferência por plasmídeos e mecanismos genético-moleculares, como os encontrados no organismo modelo Agrobacterium tumefaciens, é muito comum entre procariotos e, até mesmo, entre eucariotos unicelulares (KEELING; PALMER, 2008).

Evidências genômicas recentes sugerem que os eucariotos surgiram da fusão de uma célula de Archaea e outra de Bacteria. Grande transferência de genes poderia ter ocorrido para o genoma de eucariotos a partir de procariotos, durante eventos de endossimbiose como, por exemplo, aqueles ocorridos na origem e no desenvolvimento das mitocôndrias e dos cloroplastos (ver Capítulo 6).

Exemplo de poliploidia a partir de um erro na divisão meiótica. Um organismo tetraploide (4n) é formado pela autofecundação de gametas diploides (2n).

Efeitos estocásticos em populações de pequeno tamanho

Nos dias atuais, com o grande desenvolvimento agrícola e urbano, a destruição de áreas de habitat natural tem sido crescente. Em decorrência disso, animais e plantas são forçados a habitarem áreas mínimas e com populações em tamanho cada vez menor. Com isso, cada fragmento pode transformar-se em uma “ilha”, e as populações podem tornar-se isoladas reprodutivamente, caso não haja fluxo gênico entre elas. O isolamento faz que a população de cada “ilha” esteja sob maior risco de extinção e, ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça, sob maior chance de especiação (formação de uma nova espécie). Para a conservação de espécies, é essencial que o número de indivíduos reprodutivamente ativos em uma população seja maximizado e que esses indivíduos tenham variação em sua capacidade de continuar se adaptando a um ambiente em alteração. A variabilidade genética de uma população aumenta as chances da existência de indivíduos resistentes a alterações ambientais (novas doenças, mudanças climáticas, catástrofes) e reduz o risco de extinção.

Na natureza, uma população é composta por todos os seus indivíduos. Porém, do ponto de vista da genética de populações, o que importa é sua estrutura reprodutiva e, consequentemente, a possibilidade de transmissão dos alelos de um gene para uma próxima geração. O conceito de tamanho efetivo de população (Ne) foi introduzido pelo geneticista americano Sewall Wright, em 1931, e foi definido como o número de indivíduos que se acasalam em uma população idealizada, que apresenta a mesma dispersão de frequências alélicas, sob deriva genética ou endogamia, que a população em consideração (RIDLEY, 2004). Também pode ser definido como o tamanho médio de uma população no que se refere ao número de indivíduos que contribuem efetivamente com gametas a cada geração.

O tamanho efetivo populacional é geralmente menor do que o tamanho absoluto da população. É um parâmetro básico em estudos de genética de populações. Além disso, aponta o número real de uma população do ponto de vista genético, ou seja, o número de indivíduos que contribuem com gametas (alelos) para a formação das próximas gerações e, consequentemente, para a manutenção da variabilidade genética (RIDLEY, 2004).

Deriva genética

Na vida real, o destino de indivíduos (e de seus descendentes) está sujeito, muitas vezes, a incidentes imprevisíveis. A sobrevivência e a reprodução de organismos são suscetíveis a eventos completamente aleatórios, que independem da aptidão de seus genes. A deriva genética é o processo pelo qual a frequência de alelos em uma população muda ao longo do tempo de maneira aleatória. O exemplo de mais fácil percepção é a combinação aleatória de cromossomos durante a meiose. Se um casal de um organismo diploide sexuado tem uma pequena prole, nem todos os alelos dos genitores são passados aos seus descendentes. Isso se deve unicamente a erro de amostragem dos alelos durante a meiose (RIDLEY, 2004).

Simulação do efeito da deriva genética na frequência de alelos de um mesmo lócus para os indivíduos (círculos) de duas populações de tamanhos diferentes. Oito alelos (meio círculos de cores iguais) foram sorteados para cada indivíduo da geração zero da população fundadora. Cada indivíduo possui dois alelos recebidos aleatoriamente dos genitores. A reprodução foi aleatória e monogâmica, com apenas dois descendentes. A composição da população de seis indivíduos foi copiada da de oito mais a remoção dos dois últimos indivíduos. A reprodução da população de seis também foi copiada da de oito indivíduos. Aqueles indivíduos que acasalavam com os removidos passaram a acasalar entre si. A população com oito indivíduos (A) perdeu um alelo na primeira geração e outro apenas na 13ª geração (dois alelos perdidos). A população com seis indivíduos (B) perdeu alelos na primeira, na quarta, na quinta e na 11ª geração (quatro alelos perdidos em 13 gerações). Quanto menor a população, mais rápida é a perda de alelos por deriva genética.

A deriva genética apresenta alguns importantes efeitos sobre a evolução. Por um lado, ela reduz a variabilidade genética de uma população, limitando sua capacidade de reação a pressões seletivas. Por outro lado, ela favorece o aumento da distância genética entre populações, sendo de grande importância no processo de especiação (KLUG; CUMMINGS, 1997) (ver Capítulo 5). Vale lembrar que, ainda que seja um mecanismo de evolução, a deriva genética não produz adaptação e muito menos variação. Os efeitos da deriva genética são muito mais severos e rápidos quanto menor for o tamanho efetivo populacional, pois, nesses casos, as forças de seleção são fracas ou inexistentes e a frequência de alelos flutua ao acaso.

Por causa da deriva, alelos de uma população podem ser fixados ou desaparecer de maneira fortuita, especialmente no caso de espécies ameaçadas, sobre as quais os efeitos da deriva genética podem ser catastróficos. Quando o número de indivíduos de uma população é muito pequeno, existe até mesmo a possibilidade de todos os descendentes de uma geração virem a ser de um mesmo sexo, determinando assim a sua extinção. A deriva genética também pode levar à fixação de alelos diferentes em populações isoladas, e isso aumenta a diferenciação genética entre elas e induz a especiação (KLUG; CUMMINGS, 1997).

Quando os genomas de indivíduos de diferentes espécies são comparados, percebe-se que a maioria das diferenças moleculares é seletivamente neutra, amplamente dependente de elementos estocásticos, especialmente de deriva genética. Essa constatação levou ao desenvolvimento da teoria neutra da evolução molecular. Segundo esse modelo, a maioria das mudanças genéticas em uma população não está sujeita à seleção e é consequência de constante pressão de mutação e deriva genética (KLUG; CUMMINGS, 1997).

Depressão endogâmica

Em uma grande população, a probabilidade de um indivíduo encontrar um par com o qual não seja aparentado para acasalar é maior do que em uma população pequena. Em outras palavras, em uma população com número limitado de indivíduos, a probabilidade de acasalamento entre indivíduos relacionados é enorme. A consequência disso é a grande ocorrência de endocruzamento (acasalamento entre indivíduos aparentados). Uma vez que indivíduos aparentados compartilham alelos idênticos com frequência maior do que indivíduos não aparentados, a consequência imediata do endocruzamento é a redução da variabilidade genética da população e aumento da homozigose (KLUG; CUMMINGS, 1997).

A endogamia pode causar maior expressão de anomalias genéticas recessivas dentro de uma população. O albinismo é uma desordem genética comum em populações endogâmicas (exemplo: cobra albina da espécie Pituophis catenifer).

Foto: Patrick H. Briggs

A frequência de alelos deletérios (prejudicial à saúde do organismo) recessivos em uma população grande e com acasalamentos ao acaso geralmente é pequena. Ela é mantida em indivíduos heterozigotos e seus efeitos são mascarados pelos alelos dominantes. Porém, quando a população é pequena e acasalamentos endogâmicos são comuns, existe um aumento na frequência de indivíduos homozigotos na população, incluindo para os alelos recessivos deletérios. Quando isso ocorre, a aptidão média da população decresce, e ela apresenta alta taxa de doenças genéticas, deficiências metabólicas, baixa fecundidade e mortalidade (KLUG; CUMMINGS, 1997). Entretanto, se acasalamentos endogâmicos ocorrem por várias gerações em uma população sob seleção natural, os alelos deletérios podem ser eliminados da população. Dessa forma, um aspecto positivo do endocruzamento é o fato de ele também poder levar à fixação de alelos favoráveis.

Consequências de um efeito de gargalo causado por uma catástrofe sobre tamanho e diversidade genética de uma população. Ambos decrescem com a catástrofe. Após a catástrofe, pode haver recuperação no tamanho populacional, mas a diversidade genética continua sendo aquela dos indivíduos sobreviventes no momento do gargalo ou menor.

O guepardo (Acinonyx jubatus) apresenta uma diversidade genética muito baixa. Sugere-se que sua população deva ter sido submetida a um efeito de gargalo há alguns milhares de anos, e à consequente depressão endogâmica. Toda a população atual é provavelmente descendente do pequeno pool gênico dos animais sobreviventes à catástrofe do passado.

Foto: William Warby

Efeito de gargalo

Toda população pode estar sujeita a períodos de declínio causados por alterações ambientais ou por um evento cataclísmico. Quando isso ocorre com uma população de tamanho reduzido, os efeitos são ainda mais catastróficos. Nesse caso, acontece uma rápida e drástica redução no tamanho populacional, com a morte da maioria dos indivíduos. Esse processo denomina-se efeito de gargalo (FUTUYMA, 1986). Os indivíduos que conseguiram sobreviver à catástrofe podem, então, usufruir de uma situação de abundância de recursos e menor competição intraespecífica. Consequentemente, esses indivíduos podem apresentar grande sucesso reprodutivo nos anos subsequentes à catástrofe, havendo um rápido crescimento populacional. Entretanto, a diversidade genética da população após o crescimento será determinada principalmente pelo tamanho efetivo populacional durante o gargalo. Os poucos sobreviventes do cataclismo são os fundadores da nova população e carregam a pouca variabilidade genética que irá abastecer o pool gênico das gerações que estarão por vir (FUTUYMA, 1986).

Efeito fundador

Quando uma nova população é formada isoladamente por um pequeno número de indivíduos, ela é apenas uma pequena amostra da população original e apresenta somente uma porção da diversidade genética existente na população anterior (FUTUYMA, 1986). As gerações futuras carregarão não só a baixa diversidade genética do pequeno número de indivíduos fundadores, mas também suas características peculiares, que não são necessariamente a média daquela possuída pela população original. A baixa variabilidade genética determinada pelo efeito fundador faz que a nova comunidade possua menos ferramentas para enfrentar a luta pela sobrevivência e reprodução. As características particulares dos fundadores permitirão que a nova população tenha diferenças herdáveis daquelas dos indivíduos da população original. Por sua vez, as peculiaridades da pequena população isolada podem facilitar sua especiação.

Seleção natural

Darwin reconheceu a seleção natural como o mais importante mecanismo a agir sobre a variabilidade e determinar mudança entre gerações em longo prazo. Indivíduos mais adaptados ao ambiente, com uma combinação de alelos mais vantajosa, asseguram mais recursos do ambiente e têm mais chance de sobreviver e deixar mais descendentes (DARWIN, 1859). Para que a seleção natural ocorra, são necessários três fatores: a) que exista variação em um caráter entre populações e/ou dentro delas; b) que essa variação tenha uma base genética; c) que as variantes desse caráter determinem diferentes probabilidades de sobrevivência e/ou reprodução.

Existe controvérsia entre cientistas sobre qual seria a unidade de seleção que estaria sujeita à seleção natural. Entre a hierarquia da organização biológica, as unidades que poderiam estar sujeitas à seleção são: genes, células, indivíduos, populações, espécies ou, ainda, comunidades biológicas (RIDLEY, 2004). O cientista britânico Richard Dawkins, autor do livro O gene egoísta (DAWKINS, 1989), é conhecido por defender a tese de que só os genes têm funções de uso, portanto a seleção agiria sobre eles. A seleção de grupo foi utilizada por Vero Wynne-Edwards como uma explicação popular para as adaptações específicas. Refere-se à ideia de que alelos podem se tornar fixos em uma população pelos benefícios que trazem para o grupo. A seleção de grupo, porém, foi duramente criticada por diversos cientistas (KREBS; DAVIES, 1993). Por sua vez, o paleontólogo americano Stephen Jay Gould defendeu a ideia de que a seleção age no âmbito de espécies pela constatação de que existem processos macroevolutivos que moldam a evolução (ELDREDGE; GOULD, 1972).

Evidências indicam, entretanto, que a seleção natural pode agir sobre todos os níveis de hierarquia da organização biológica. Ainda que o gene seja a unidade evolutiva básica, as variações genéticas podem determinar vantagem adaptativa em razão de seu efeito na regulação da expressão gênica ou na eficiência energética de um determinado tipo celular; na velocidade de um predador relativa a outros indivíduos de uma população; na capacidade de camuflagem de indivíduos de uma espécie em relação aos de outra espécie; ou, ainda, na qualidade das relações interespecíficas. Consequentemente, essas mutações também podem ter efeito na estabilidade de um ecossistema, porque é nos genes dos muitos indivíduos das diversas espécies que está escrita a informação hereditária.

Tipos de seleção

A seleção altera a frequência de alelos em uma população, caso existam diferenças adaptativas. De acordo com os efeitos sobre a frequência de alelos, ela pode ser classificada em três diferentes tipos (FUTUYMA, 1986): estabilizadora, direcional e disruptiva.

Padrão de distribuição de uma característica dentro de uma população antes (vermelho) e depois (azul) da ocorrência dos três tipos de seleção: seleção estabilizadora; seleção direcional; seleção disruptiva.

A seleção estabilizadora favorece indivíduos que estejam próximos à média dos desvios fenotípicos para uma determinada característica (FUTUYMA, 1986). Geralmente mantém algum caráter já bem adaptado, pela eliminação de qualquer um de seus desvios marcantes. Caso o ambiente se mantenha estável, a população também permanece sem alterações. Talvez essa seja a forma mais comum de seleção natural, e constantemente nos enganamos acreditando que nenhuma seleção tenha ocorrido.

A seleção que favorece uma forma extrema sobre outra é conhecida por seleção direcional. Ela favorece aqueles indivíduos que possuem variações extremas em caracteres dentro da população. Geralmente ocorre quando uma população tem a necessidade de se adaptar a condições em transição (FUTUYMA, 1986). Esse tipo de seleção é aquilo que geralmente pensamos de seleção natural – bastante direcionada. A resistência de bactérias a antibióticos é um bom exemplo de seleção direcional. O uso excessivo de antibiótico na população humana resultou em muitas linhagens de bactérias resistentes.

A seleção disruptiva ocorre quando dois ou mais caracteres são favorecidos (FUTUYMA, 1986). Como na seleção direcional, ela favorece os caracteres extremos que ocorrem dentro da população. Esse tipo de seleção difere dos outros, pois, no caso da disruptiva, mudanças ambientais criam forças de seleção que favorecem não apenas um extremo da distribuição de caracteres na população, mas ambos os extremos. Esse é um tipo bastante incomum de seleção natural. Sugere que talvez seja um mecanismo para especiação sem a necessidade de isolamento geográfico (ver Capítulo 5). Acredita-se que esse tenha sido o caso da especiação de alguns dos tentilhões de Galápagos observados por Darwin (ver Capítulo 1) em sua viagem no Beagle. A partir de um ancestral comum, os tentilhões com bicos grandes teriam se adaptado ao consumo de sementes grandes; e aqueles com bicos pequenos, às sementes pequenas dentro do mesmo ambiente.

Seleção sexual

Quando Darwin elaborou a sua teoria da evolução, percebeu que o mecanismo da seleção natural não explicava algumas características masculinas conspícuas como a bela cauda do pavão (Tyrannus savana) ou os grandes chifres da rena (Rangifer tarandus). Acredita-se que tais características reduzam a aptidão individual e as chances de sobrevivência dos indivíduos que as possuem por dificultar a movimentação e a agilidade. Assim, elas não poderiam ter se formado por seleção natural. Darwin percebeu que era uma seleção ligada ao sexo e passou a chamá-la seleção sexual.

Na sexta edição do livro A origem das espécies, Darwin (1872, p. 69) assim descreve a seleção sexual:

Este tipo de seleção não depende da luta pela sobrevivência em relação a outro ser orgânico ou às condições externas, mas sim da luta entre indivíduos do mesmo sexo, geralmente machos, pela posse do sexo oposto. O resultado para o competidor derrotado não é a morte, mas sim a redução parcial ou total de seus descendentes.3

Assim, seleção sexual surge pelas diferenças em sucesso reprodutivo causado pela competição entre indivíduos do mesmo sexo (DARWIN, 1872). A seleção sexual é semelhante à seleção natural. No entanto, o método de seleção e o resultado final são diferentes.

Darwin, em seu livro The descent of man, and selection in relation to sex também considerou que existem dois tipos de seleção sexual: intrassexual e intersexual (DARWIN, 1874). A seleção intrassexual está relacionada à competição entre machos para o acasalamento com as fêmeas. Um bom exemplo pode ser o tamanho corporal do elefante-marinho macho (Mirounga leonina). Seu grande tamanho (4 t contra 900 kg das fêmeas) lhes proporciona vantagem na luta entre machos pela posse das fêmeas e formação de haréns.

Seleção intrassexual: a competição entre machos de elefante-marinho (Mirounga angustirostris) levou ao desenvolvimento do tamanho corporal, que é vantajoso na luta pelo acesso às fêmeas. Os machos podem pesar quatro vezes o peso das fêmeas.

Foto: Michael L. Baird (flickr.bairdphotos.com)

Já a seleção intersexual corresponde à competição entre machos para serem escolhidos pelas fêmeas, as quais elegem os machos com características que tenham relação com o sucesso na sobrevivência e na reprodução. No caso da tesourinha (Tyrannus savana), pássaro brasileiro de longa cauda bifurcada, é possível que machos com uma cauda um pouco maior voassem melhor e assim evitassem ser predados. Essa característica pode ter levado as fêmeas a escolherem machos com cauda longa, levando à dispersão dessa característica na população. Nesse caso, o processo de seleção do caráter do macho pode, por vezes, tornar-se exagerado. A preferência da fêmea por uma determinada característica do macho pode acabar se tornando desvantajosa, com seleção de machos com caudas cada vez maiores e que dificultam o voo (RIDLEY, 2004). A seleção natural passa, então, a controlar o limite de crescimento das caudas.

Seleção intersexual: a seleção por parte das fêmeas de tesourinha (Tyrannus savana) para o acasalamento com machos com cauda mais longa levou ao desenvolvimento desse caráter na população de machos.

Foto: Marcos Germano

Equilíbrio de Hardy-Weinberg

Quando a genética mendeliana foi redescoberta no princípio do século XX, biólogos mantiveram-se em dúvida sobre como a variação da frequência alélica em uma população era originada e mantida ao longo das gerações. Alguns argumentavam que alelos dominantes aumentariam sua frequência por meio de seleção e, assim, eliminariam os alelos recessivos. Em 1908, o matemático britânico Godfrey Harold Hardy e o físico alemão Wilhelm Weinberg mostraram, de forma independente, que a frequência de alelos em uma população se mantém constante, a não ser que ocorra algum tipo de distúrbio. Esse princípio, descrito por Hardy como “muito simples”, passou a ser conhecido como lei de Hardy e, posteriormente, como equilíbrio de Hardy-Weinberg. Esse princípio postula que a evolução não ocorre em uma população hipotética na ausência de forças evolutivas (KLUG; CUMMINGS, 1997), isto é, a população está em equilíbrio quando:

Em outras palavras, na ausência das forças evolutivas, tanto as frequências gênicas quantos as genotípicas de uma população permanecem constantes (estão em equilíbrio) ao longo das gerações, ou seja, a população não evolui. Obviamente essa situação nunca ocorre na natureza. Uma ou mais dessas condições estão sempre sendo transgredidas em populações naturais, portanto elas estão sempre em evolução.

Frequência hipotética de genótipos em uma população pelo equilíbrio de Hardy-Weinberg para dois alelos A e a. A rejeição dessas frequências alélicas significa que a população apresenta alterações em decorrência da ação de mecanismos evolutivos.

Utilizado para testar se as frequências de genótipos estão sendo alteradas de uma geração para outra, o equilíbrio de Hardy-Weinberg é um princípio básico em estudos de genética de populações. A verificação do equilíbrio de Hardy-Weinberg possibilita comparar a estrutura genética de uma população (frequências observadas) com a estrutura de uma população hipotética (frequências esperadas) em equilíbrio. A rejeição da hipótese de que as frequências observadas são semelhantes às esperadas indica que uma população apresenta alterações significativas de frequência dos genótipos ao longo das gerações, em decorrência da ação de um ou mais mecanismos evolutivos (KLUG; CUMMINGS, 1997), estando, portanto, em evolução.

Aptidão e adaptação

Em seu livro A origem das espécies, Darwin menciona a “perfeição das estruturas”, que permite aos organismos terem habilidade para se manterem vivos e reproduzirem-se. Ele nominou tal habilidade de “aptidão”, descrevendo-a como a combinação de todos os caracteres que contribuem para a sobrevivência e a reprodução de um organismo em seu ambiente (DARWIN, 1859). Na atualidade, consideramos aptidão como o sucesso reprodutivo de um organismo, isto é, a proporção de genes de um indivíduo presente entre os genes da próxima geração (RIDLEY, 2004). Trata-se de algo relativo, pois a aptidão de um genótipo depende do ambiente em que o organismo vive. A capivara (Hydrochoerus hydrochaeris), por exemplo, está apta a viver em savanas sazonalmente inundáveis. Ela não sobreviveria em um deserto.

Aptidão: a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) está apta à vida nas savanas sazonalmente inundáveis da região neotropical. Tem um hábito semiaquático, nadadeiras interdigitais, narinas, ouvidos e olhos no topo da cabeça, entre outras adaptações. Ela não sobreviveria em um deserto.

Foto: Max Silva Pinheiro

O conceito de aptidão é usado de forma extremamente conveniente para descrever a capacidade que tem um determinado genótipo de deixar descendentes, em relação a outros genótipos. O termo engloba tudo aquilo que realmente importa para a seleção natural: sobrevivência e reprodução (RIDLEY, 2004). O animal mais apto não é, necessariamente, aquele mais forte, maior, mais rápido, mais resistente. O conceito de aptidão separa a evolução de algumas das concepções erroneamente a ela atribuídas. Seleção natural não produz perfeição, não é guiada e não tem objetivos. Também não é aleatória. Mutações são aleatórias, mas a seleção natural não. Ela seleciona, dentro da variação já existente na população, os organismos que sejam mais aptos a deixar descendentes.

As mudanças ambientais ou a exploração de novos nichos ecológicos geram novo direcionamento da pressão de seleção que, junto aos caracteres estruturais, fisiológicos e comportamentais, aumentam a aptidão dos organismos de uma população, das gerações subsequentes (RIDLEY, 2004). O posicionamento dos olhos, narinas e ouvidos do jacaré (Caiman yacare) no topo da cabeça é uma adaptação à vida na água, assim como as membranas interdigitais nas patas do pato selvagem (Cairina moschata). A casca grossa de várias árvores do Cerrado brasileiro são adaptações contra o fogo e parasitas. São inúmeros os exemplos de adaptações dos animais e plantas aos seus ambientes.

Exemplo de adaptação: o posicionamento dos olhos, narinas e ouvidos do jacaré (Caiman yacare) no topo da cabeça é uma adaptação à vida semiaquática.

Foto: Ubiratan Piovezan

Entretanto, nem tudo é adaptação. Algumas espécies de peixes cavernícolas apresentam olhos vestigiais que, no escuro da caverna, não têm função alguma. As espécies cavernícolas atuais carregam apenas subprodutos de sua história evolutiva.

A teoria da evolução percorreu um longo caminho desde Darwin. À medida que entramos na era da genômica, melhora o nosso entendimento a respeito da função dos genes, do funcionamento dos genomas e do efeito ambiental na determinação dos fenótipos dos organismos. O entendimento de como a seleção natural, ao favorecer determinados fenótipos em detrimento de outros, gerou os mais diversos sistemas genéticos e diferentes mecanismos de controle da expressão gênica é de suma importância para a compreensão da evolução dos genomas e, consequentemente, de seu funcionamento. Essa constatação corrobora ainda mais a famosa frase de Theodosius Dobzhansky de que “nada na biologia faz sentido, exceto à luz da evolução”4 (DOBZHANSKY, 1964, p. 449).

Exemplo de caráter que não é uma adaptação: os olhos vestigiais do bagre-cego (Typhleotris madagascariensis) de caverna no parque Tsimanampetsotsa, em Madagascar, são reminiscências dos órgãos adaptativos da espécie ancestral.

Foto: Frank Vassen

Referências

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