CAPÍTULO 2

QUALIDADE DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS NO BRASIL E SUAS RELAÇÕES COM AS ATIVIDADES AGRÍCOLAS

Marco Antonio Ferreira Gomes

Cláudio Aparecido Spadotto

Introdução

A partir dos anos 1990, a preocupação com a água subterrânea aumentou de forma considerável no Brasil, algo até então não imaginável pela população, uma vez que o País sempre foi abundante em água superficial, sendo detentor do maior potencial hídrico do planeta. Como o consumo de água superficial tem ocorrido de forma pouco racional, com desperdícios que vão desde o sistema de captação, tratamento e distribuição até aquele praticado pelo próprio consumidor/usuário, os problemas de abastecimento urbano têm crescido de forma preocupante. Nesse cenário, a pesquisa tem atuado na busca de formas e fontes alternativas de abastecimento. Em relação às formas de abastecimento, as atenções têm sido direcionadas para os processos de tratamento e recuperação parcial das águas de esgotos, principalmente visando à reutilização na indústria. Já em relação às fontes alternativas de abastecimento, as atenções têm sido voltadas para a água subterrânea, cuja reserva no Brasil é expressiva e, por isso mesmo, estratégica para a sobrevivência das gerações vindouras. No entanto, a preservação dos mananciais subterrâneos depende, em essência, das práticas/atividades que são adotadas em superfície, uma vez que existem inúmeros sistemas de comunicação entre as águas superficiais e as águas subterrâneas. Dentre esses sistemas, destacam-se as áreas de recarga de aquíferos, locais que favorecem a movimentação mais rápida de produtos poluentes até a zona saturada. Nesse contexto, todas as atividades e, dentre elas, as de origem agrícola, oferecem riscos à qualidade da água subterrânea, principalmente pelo uso de agrotóxicos que, juntamente com muitos de seus metabólitos, fertilizantes nitrogenados – que dão origem ao nitrato –, e ainda metais pesados, podem causar danos à saúde humana. Dessa forma, a identificação de riscos de contaminação da água subterrânea, a partir do tipo de atividade agrícola, constitui-se em ferramenta auxiliar como instrumento de gestão agroambiental, sobretudo para a manutenção da sua qualidade.

Em outros países, particularmente naqueles mais desenvolvidos, as questões sobre riscos de contaminação da água subterrânea por agroquímicos remontam ao início da década de 1970, quando tais produtos passaram a ser usados de forma mais intensiva na agricultura. Hoje, a preocupação tem sido uma constante nesses países, principalmente porque, em muitos deles, existem sérios problemas de contaminação da água subterrânea, tanto por agrotóxicos quanto por nitrato.

O objetivo do presente trabalho é o de mostrar, de uma forma genérica, o cenário atual da qualidade da água subterrânea das principais regiões brasileiras, considerando a influência das atividades agrícolas como fonte potencial de contaminação, principalmente por agrotóxicos e nitrato.

Qualidade da água subterrânea em relação ao padrão de potabilidade

A água subterrânea tem sua composição geoquímica normalmente influenciada pelo material geológico do aquífero, esperando-se, portanto, uma variação na concentração natural de metais e outros compostos entre os diferentes aquíferos.

De um modo geral, os grandes aquíferos, tanto no Brasil quanto em outros países, não têm apresentado problemas de potabilidade em vista da composição de suas rochas portadoras, mas sim em função da presença de produtos de origem antropogênica, relacionados às atividades urbanas, com geração/emissão de efluentes/poluentes de origem doméstica e industrial e atividades agrícolas, com geração/emissão de poluentes a partir dos insumos utilizados.

Muitos trabalhos têm sido realizados visando ao estabelecimento de padrões de qualidade das águas, conforme os diferentes tipos de uso. No Brasil, tem-se adotado, principalmente para o padrão de potabilidade (água Classe 1), considerando a presença de agrotóxicos, as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) em combinação com o disposto, inicialmente, na Portaria nº 36 de 19/01/1990 (BRASIL, 1990) e, posteriormente, na Portaria nº 1.469 datada de 29/12/2000 (BRASIL, 2000) do Ministério da Saúde (MS), com a inclusão de mais substâncias químicas, particularmente agrotóxicos, conforme mostram os dados contidos na Tabela 1.

Tabela 1. Limites para padrão de potabilidade de água, considerando algumas moléculas orgânicas de uso agrícola (OMS e MS).

Parâmetro

Unidade
(concentração)

MS
(Port. 36)

OMS
(recomendação)

MS
(Port. 1.469)

Alaclor

μg L-1

-

-

20,00

Aldrin

μg L-1

-

-

0,03

Atrazina

μg L-1

-

-

2,00

Bentazona

μg L-1

-

-

300,00

DDT

μg L-1

1,00

1,00

2,00

Dieldrin

μg L-1

0,03

0,03

0,03

Endossulfan

μg L-1

-

-

20,00

Endrin

μg L-1

0,20

-

0,60

FCH (lindane)

μg L-1

3,00

3,00

2,00

2,4-D

μg L-1

100,00

100,00

30,00

Glifosato

μg L-1

-

-

500,00

Heptacloro

μg L-1

-

-

0,03

Hexaclorobenzeno

μg L-1

-

-

1,00

Lindane

μg L-1

-

-

2,00

Metolacloro

μg L-1

-

-

10,00

Metoxicloro

μg L-1

-

-

20,00

Molinato

μg L-1

-

-

6,00

Pendimetalina

μg L-1

-

-

20,00

Pentaclorofenol

μg L-1

-

-

9,00

Permetrina

μg L-1

-

-

20,00

Propanil

μg L-1

-

-

20,00

Simazina

μg L-1

-

-

2,00

Trifluralina

μg L-1

-

-

20,00

Pesticidas (individual)(1)

μg L-1

-

-

-

Pesticidas (total)(2)

μg L-1

-

-

-

(1) Para a Europa, a Comunidade Econômica Europeia (CEE) recomenda 0,1 mg L-1.

(2) Para a Europa, a CEE recomenda 0,5 mg L-1.

Fonte: Brasil (1990, 2000).

Já a EPA1 (1999) adota os limites – Maximum Contaminant Level Goal (MCLG), o nível máximo do contaminante, considerado para a água potável – para os mesmos agrotóxicos, conforme consta da Tabela 2.

Tabela 2. Limites estabelecidos pela EPA para padrão de potabilidade de água, considerando as moléculas de alguns agrotóxicos.

Agrotóxicos

Unidade

EPA
(MCLG)

Potenciais efeitos na saúde, se ultrapassado o limite(1)

Fontes de
contaminação

Alaclor

μg L-1

0

Anemia e aumento
do risco de câncer

(Herbicida) Escoamento superficial

Culturas anuais (soja, milho)

Atrazina

μg L-1

3

Problemas no sistema cardiovascular e dificuldades
de reprodução

(Herbicida) Escoamento superficial

Utilizada em áreas com cultivo em fileiras (soja, milho, etc.)

Carbofuran

μg L-1

40

Problemas no sistema nervoso e dificuldades de reprodução

(Inseticida) Lixiviação

Utilizado em áreas de arroz e de cultivo de alfafa

Chlordane

μg L-1

0

Aumento do risco de câncer

(Inseticida) Lixiviação em áreas agrícolas

2,4-D

μg L-1

70

Problemas nos rins,
fígado e glândulas

(Herbicida) Escoamento superficial em áreas agrícolas

Dalapon

μg L-1

200

Mau funcionamento dos rins

(Herbicida) Escoamento superficial em autoestradas

1,2-Dibromo-3-chloropropano (DBCP)

μg L-1

0

Dificuldades de reprodução e aumento do risco de câncer

(Inseticida) Escoamento superficial

Utilizado em soja, algodão, abacaxi e em pomares

Dinoseb

μg L-1

7

Dificuldades de reprodução

(Herbicida) Escoamento superficial

Utilizado em áreas de soja

Diquat

μg L-1

20

Favorece a formação de cataratas nos olhos

(Herbicida) Escoamento superficial

Uso em diversos cultivos

Endothall

μg L-1

100

Úlceras e problemas intestinais

(Herbicida) Escoamento superficial

Uso em diversos cultivos

Endrin

μg L-1

2

Efeitos sobre o sistema nervoso

(Inseticida) Escoamento superficial

Atualmente é proibido

Glifosato

μg L-1

700

Problemas nos rins e
dificuldades de reprodução

(Herbicida)

Escoamento

superficial

Utilizado em áreas de soja

Heptacloro

μg L-1

0

Prejudicial ao fígado;
aumento do risco de câncer

(Inseticida) Escoamento superficial

Atualmente é proibido

Lindane

μg L-1

2

Problemas com rins e fígado

(Inseticida)

Escoamento/lixiviação

Áreas de pastagens e jardins

Metoxicloro

μg L-1

40

Dificuldades de reprodução

(Inseticida)

Escoamento superficial

Utilizado em frutas em geral

Oxamil

μg L-1

200

Pouco efeito sobre
o sistema nervoso

(Inseticida)

Escoamento

superficial

Aplicado em maçã, batata e tomate

Picloran

μg L-1

500

Problemas no fígado

(Herbicida)

Escoamento
superficial

Simazina

μg L-1

4

Problemas no sangue

(Herbicida)

Escoamento
superficial

Toxafeno

μg L-1

0

Problemas no fígado, rins, glândula tireoide e risco de câncer

(Inseticida)

Escoamento

superficial

Aplicado em algodão; atualmente é proibido

2,4,5-TP (Silvex)

μg L-1

50

Problemas no fígado

(Herbicida)

Resíduos em solo

1 Environmental Protection Agency, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos.

(1) Limite de tolerância ultrapassado, seguido de ingestão por período prolongado.

Fonte: EPA (1999).

Qualidade da água subterrânea no Brasil e influência das fontes difusas de contaminação

Região Sudeste

Existem informações limitadas sobre a presença de agrotóxicos nas águas subterrâneas (aquíferos) da região Centro-Sul/Sudeste. Os relatos mais antigos referem-se aos compostos organoclorados, facilmente detectáveis em função da meia-vida (t½) longa e da baixa degradabilidade aliada à simplicidade (moléculas menos complexas) de sua composição química. Assim, os produtos hoje encontrados (BHC, DDT e Aldrin), tanto no solo quanto na água subterrânea, são resultantes das aplicações sucessivas na cafeicultura durante as décadas de 1950, 1960 e 1970. Os estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná são os que mais apresentam casos de ocorrência de organoclorados, justamente pela tradição, em um determinado período, no passado, do cultivo de café.

Em épocas mais recentes, com a proibição dos organoclorados, passaram a ser usados os organofosforados, de t½ mais curta e composição química mais complexa, características estas que tornaram mais difícil a detecção dos mesmos no ambiente. As diferentes combinações de fórmulas contribuíram então para o surgimento de dezenas de princípios ativos, classificados em herbicidas, inseticidas e fungicidas/acaricidas, conforme o tipo de alvo a se combater.

Na água subterrânea, principalmente em aquíferos, conhece-se mais sobre a ocorrência de compostos organoclorados no Estado de São Paulo, principalmente a partir de estudos na região de Ribeirão Preto. Nesse município, um estudo sobre a ocorrência de algumas moléculas de herbicidas, seguido da avaliação de risco em uma microbacia de uso intensivo com cana-de-açúcar, mostrou que alguns deles podem comprometer a qualidade da água subterrânea, principalmente por apresentarem elevado potencial de lixiviação (EMBRAPA, 1998; MATALLO et al., 2003). Na verdade, produtos com essas características têm surgido em concentrações mais elevadas do que os demais produtos analisados e com valores um pouco acima da metade do nível crítico para padrão de potabilidade, se considerado o limite estabelecido pela Comunidade Econômica Europeia (CEE), conforme Altenburger (1993). Certamente, esse deve ser o cenário para as demais regiões, onde predomina a monocultura, uma vez que essa prática exige alta entrada de insumos, principalmente agrotóxicos. No caso de Ribeirão Preto, o cenário torna-se mais delicado em razão de o uso intensivo de agrotóxicos ocorrer em áreas de recarga direta do aquífero Guarani, expondo-as ao risco de contaminação (EMBRAPA, 1999a; PESSOA et al., 2003).

Filizola et al. (2002), ao avaliarem o uso de agrotóxicos na região de Guaíra, SP, concluíram que praticamente todos eles não oferecem riscos para a água subterrânea, uma vez que os solos são bastante profundos e com grande capacidade de retenção. Porém, isso não invalida a necessidade de estudos mais longos e detalhados na região.

Com o nitrato (NO-3) não é diferente, principalmente nas culturas que exigem altas doses de nitrogênio. Uma vez no solo, o nitrogênio combina-se com o oxigênio e forma nitrato, principalmente em meio ácido (pH < 5).

Na região de Lençóis Paulista, SP, por exemplo, foram detectadas concentrações acima de 60 mg L-1 de NO-3 na solução do solo em decorrência de sucessivas aplicações de vinhaça. Essa situação pode favorecer o aumento, quando se atinge o nível crítico, desse composto na água subterrânea da região (CRUZ et al., 1991). Já em Ribeirão Preto, SP, em cultivo intensivo de cana-de-açúcar, os valores de NO-3 encontrados para a água subterrânea não atingiram o nível crítico (10 mg L-1), mas chegaram a 50% desse valor.

Um estudo mais detalhado em vários poços profundos do Estado de São Paulo no período compreendido entre 1992 e 1997 mostrou a situação do nitrato, embora não tenha sido possível avaliar se sua origem está diretamente relacionada às atividades urbanas ou às rurais ou a ambas, conforme a Tabela 3 (CETESB, 1997).

Tabela 3. Poços tubulares profundos com indícios de contaminação para nitrato no período de 1992–1997.

Município

Regional

Aquífero

Profundidade (m)

Proprietário

Período da análise

Amplitude da variação
(mg L-1)

(1) Daee – Departamento de Águas e Energia Elétrica.

ANCA – Sistema aquífero Anastácia-Cauá; BOPI – Sistema aquífero Botucatu-Pirambóia; AD – Sistema aquífero Adamantina; ADAN – Sistema aquífero Adamantina-Anastácio; AN – Sistema aquífero Anastácio.

Fonte: Cetesb (1997).

Andradina

Araçatuba

ANCA

105,0

Daee(1)

1993–1997

1,600 – 7,200

Botucatu

Sorocaba

BOPI

76,0

Sabesp

1994–1997

4,200 – 6,800

Cajobi

São José
do Rio Preto

AD

126,0

Sabesp

1996–1997

5,200 – 9,600

Clementina

Araçatuba

AD

94,5

Daee

1993–1997

1,900 – 7,180

Indiana

Presidente Prudente

ADAN

151,0

Prefeitura

1992–1997

1,990 – 7,190

Inúbia Paulista

Presidente Prudente

ADAN

220,0

Sabesp

1992–1997

0,500 – 6,600

Jales

São José
do Rio Preto

ADAN

145,0

Sabesp

1993–1997

2,300 – 8,400

Muritinga do Sul

Araçatuba

ADAN

140,0

Prefeitura

1993–1997

0,500 – 4,970

Nova Independência

Araçatuba

AN

91,0

Daee/Prefeitura

1993–1997

0,500 – 4,970

Orlândia

Ribeirão Preto

BOPI

450,0

Daee/Prefeitura

1995–1997

3,300 – 5,800

Tupã

Marília

AD

122,5

Sabesp

1993–1997

<0,029 – 5,250>

Uchoa

São José
do Rio Preto

ADAN

130,0

Sabesp

1995–1997

1,000 – 9,800

Quando se trata de aquíferos menos profundos, a exemplo do Bauru, que é do tipo livre, onde a recarga é direta, os riscos de contaminação da água subterrânea são elevados. Existem vários casos de poços com níveis elevados de nitrato no aquífero Bauru, conforme constatação do Departamento de Águas e Esgotos de Bauru (DAE). Segundo relatório elaborado pelo próprio DAE, as concentrações de nitrato apresentaram um aumento significativo a partir de janeiro de 1999, atingindo valores máximos de até 40 mg L-1 de N-NO3, e tem se mantido numa faixa média de 25 mg L-1 a 28 mg L-1, o que justificou o DAE manter um monitoramento diário de análise de nitrato desse poço.

Existem ainda outros fatos relacionados principalmente à qualidade da água dos chamados “cinturões verdes”, como Mogi das Cruzes e Suzano na Grande São Paulo, e regiões de intensa atividade olerícola, como é o caso do Vale do Ribeira, litoral sul do Estado de São Paulo.

Região Sul

No Estado do Rio Grande do Sul, estudos realizados por Mattos et al. (2002) têm mostrado a presença de glifosato em lavouras de arroz irrigado com água proveniente da lagoa Mirim em concentrações acima do máximo permitido pela EPA. Na região de Alegrete, por exemplo, o cenário deve ser semelhante, uma vez que o manejo e os procedimentos de irrigação são análogos, com agravante de que, nesse município, as áreas cultivadas com arroz encontram-se na porção de recarga direta do aquífero Guarani.

Em Santa Catarina, situação semelhante ocorre no vale do rio Itajaí, onde existe atividade intensiva de rizicultura por inundação. Todavia, não existe qualquer informação relacionada a uma situação de risco para a água subterrânea na região, considerando a presença do glifosato.

Região Norte/Nordeste

Na região amazônica, o comprometimento da qualidade da água de uma forma global está diretamente relacionado à possibilidade do avanço da monocultura, principalmente soja. Ainda não existem estudos ou qualquer tipo de monitoramento que evidenciem uma situação preocupante na região. Todavia, a pesquisa agropecuária necessita atuar de forma mais pragmática no sentido de se posicionar frente aos avanços da fronteira agrícola na região, apresentando propostas de uso mais racional, com equilíbrio ambiental, econômico e social.

Na região Norte, por exemplo, os riscos de contaminação da água subterrânea concentram-se, principalmente, na porção nordeste do Pará, onde a monocultura de soja avança sobre todos os tipos de solos, principalmente na região de Paragominas. Esse cenário coloca o aquífero Itapecuru (livre), representativo da região, em situação de alerta, uma vez que as condições atuais de ocupação e manejo do solo indicam possíveis interferências, com alterações nesse manancial subterrâneo, tanto sob o aspecto qualitativo como também quantitativo. Ainda no Estado do Pará, existe um cenário preocupante na região de Igarapé Açu, especificamente na bacia hidrográfica do Igarapé Cumaru, onde se utiliza uma carga expressiva de agrotóxicos sem controle, vários deles com alto potencial de lixiviação e de transformação (metabólitos) em compostos mais tóxicos do que as moléculas originais. Trabalhos realizados por Lima (2003) na região de Igarapé Açu, por exemplo, indicaram que o inseticida/acaricida dimetoato pode chegar ao lençol freático e comprometer a qualidade de água do aquífero freático do Grupo Barreiras.

Na região Nordeste, o cenário torna-se ainda mais crítico, principalmente em vista do uso intensivo, envolvendo sistemas de produção de frutas para exportação. Toda a região do vale do Submédio São Francisco está sob esse sistema, com a utilização de pivôs de irrigação. Um sistema como esse, com atuação por tempo prolongado, sem maiores controles da qualidade e quantidade da água usada, pode favorecer o aparecimento de dois problemas básicos: a) diminuição da disponibilidade da água do rio para outros fins mais nobres; b) salinização/contaminação do solo, afetando sensivelmente a produtividade e a água do lençol freático, que é muito raso em toda a região.

O projeto denominado Monitoramento da qualidade da água para o desenvolvimento sustentável do Semiárido brasileiro, conduzido pela Embrapa Meio Ambiente na região de Petrolina, PE/Juazeiro, BA, no período 2001–2004, fez um diagnóstico da situação da qualidade da água, tanto superficial quanto subterrânea, e a consequente proposição de ações de gestão sustentável desses recursos, de forma a garantir não só a qualidade das frutas para exportação, mas também a qualidade de vida das populações diretamente envolvidas (EMBRAPA, 1999b; FERRACINI et al., 2001).

Outra região que merece atenção particular é a de ocorrência dos aquíferos Serra Grande (predominantemente confinado) e Poti-Piauí (livre). O primeiro apresenta um cenário de alerta quanto ao aspecto quantitativo, uma vez que se tem observado desperdício de água em toda a região sul do Piauí. Do ponto de vista qualitativo, a salinidade, por enquanto, é o maior problema, principalmente na região de ocorrência de suas áreas de recarga, situadas a leste/sudeste do estado, principalmente na região de Picos (EMBRAPA, 2003). No caso do segundo aquífero, tipicamente freático ou livre, o cenário envolve aspectos qualitativos e quantitativos. Sob o aspecto qualitativo, existe uma situação de risco, dada a presença de intensa atividade de fruticultura, principalmente manga e limão, que requerem quantidade considerável de insumos. Sob o aspecto quantitativo, a irrigação dessas mesmas frutas passa a ser o cenário mais crítico, principalmente pela explotação descontrolada da água subterrânea.

Já na região do Agreste do Estado de Pernambuco, assim como do “brejo paraibano” (parte do Agreste do Estado da Paraíba), onde são intensas as atividades de olericultura, o problema de contaminação do lençol freático e de poços de cacimba é mais evidente, embora não existam maiores estudos na região. Informações extraoficiais, endossadas pela extensão rural, confirmam o uso abusivo de agrotóxicos, principalmente fungicidas e inseticidas. Dentre esses destacam-se os ingredientes ativos (i.a.) captan, benomil, endosulfan, paration e malathion. Normalmente, as áreas onde se usam tais produtos são formadas por encostas com declividade sempre acima de 8%, com pratica de irrigação/fertirrigação por meio de bombeamento, com posterior distribuição por gravidade. Os poços e açudes localizados nas partes mais baixas dessas áreas recebem o excedente hídrico por meio do escoamento superficial. Essa água acumulada nas partes mais baixas, normalmente, é reutilizada no processo de irrigação, enriquecendo-se assim em fertilizantes e agrotóxicos a cada nova utilização. Conforme Araújo et al. (2000), estudos realizados no estado para a cultura de tomate comprovaram a ocorrência do emprego preventivo dos agrotóxicos gerando outros problemas, dentre eles a necessidade de uso crescente de novos produtos e misturas; além disso, constataram que há carência de ações que visem à proteção da saúde dos trabalhadores rurais que lidam com agrotóxicos, bem como de medidas contra os danos ambientais.

Na Bahia, o cenário mais crítico está relacionado ao aquífero Urucuia, região oeste do estado. Com a expansão das atividades agrícolas, principalmente soja, vários municípios tiveram um crescimento acima da média do estado e, com isso, o crescimento do consumo de água, não só para abastecimento urbano, mas principalmente para as lavouras irrigadas; estas muitas vezes com utilização de água subterrânea. Estudos realizados por Pimentel et al. (2000) mostraram que a recarga líquida do aquífero Urucuia pelas águas das chuvas na região é de apenas 20%, aproximadamente 258,5 mm ano-1. O estudo teve por base a obtenção de histogramas no período de 1984 a 1995.

Com desmatamento e o consequente plantio de grãos, a recarga do aquífero Urucuia tende a diminuir, afetando não só a sua reserva, mas também o volume da água de diversos cursos d’água, já que muitos deles dependem do próprio aquífero em questão. Praticamente todos os afluentes da margem esquerda do rio São Francisco, tendo o rio Grande como principal tributário, dependem do armazenamento de água nos arenitos da formação Urucuia (aquífero Urucuia) associados às rochas pelíticas fraturadas do Grupo Bambuí.

Do ponto de vista qualitativo, existe uma situação de risco de contaminação, uma vez que o cultivo intensivo de grãos – o qual exige alta entrada de insumos – ocorre em área de recarga do aquífero Urucuia.

Região Centro-Oeste

Na região Centro-Oeste, três áreas que, a princípio, apresentam cenários mais críticos em relação a uma possível situação de risco de contaminação do lençol freático e, por consequência, das águas mais profundas, foram consideradas nesta abordagem.

A primeira delas refere-se às porções de recarga do aquífero Guarani no chamado domínio pedomorfoagroclimático das nascentes do Araguaia, conforme Gomes et al. (2002, 2006, 2008). Estudos realizados nessa região no período de 1999–2001 mostraram que existe uma forte pressão de ocupação agrícola das áreas de recarga, principalmente pelas culturas de soja e milho, cujos solos são bastante arenosos. Uma avaliação mais recente realizada in loco pelo primeiro autor do presente trabalho constatou presença de cultura de algodão como a terceira em expansão na área. Por se tratar de culturas com exigências de insumos em grande quantidade, o cenário passa a ser de alerta. Nesse sentido, os trabalhos da Embrapa na região foram reiniciados com o projeto denominado Manejo agroecológico das áreas de recarga do aquífero Guarani na região das nascentes do rio Araguaia: subsídio à proteção dos recursos hídricos subterrâneos. A partir de um levantamento inicial de agrotóxicos mais usados no cultivo da soja na região, pelo menos três deles apresentam potencial mais significativo para lixiviar até a zona saturada do aquífero – clorimuron-etil, imazetapir e haloxifop. Situação semelhante ocorre com o milho, com destaque para os herbicidas atrazina e nicossulfuron. Todavia, há necessidade de estudos de lixiviação com esses produtos para avaliar o risco efetivo que possam oferecer para a água subterrânea da região.

A segunda região fica localizada no Estado do Mato Grosso, onde o uso e manejo do solo ao longo de 12 anos nas nascentes do rio Paraguai (Alto Pantanal) propiciaram a redução entre 40% e 50% dos teores de matéria orgânica dos solos cultivados em relação aos solos virgens. Ao mesmo tempo, tais áreas foram submetidas a cultivos intensivos, com exigências tanto de adubos e fertilizantes quanto de agrotóxicos. Esse cenário mostra uma situação de risco para o lençol freático, uma vez que a matéria orgânica atua como “tampão” ou mecanismo de retenção de compostos químicos (RIEDER et al., 2000).

A terceira região localiza-se na porção leste do Estado de Mato Grosso, onde Dores et al. (2001), a partir do levantamento e análise de parâmetros físicos e químicos do solo e de 29 agrotóxicos, verificaram o potencial de contaminação de águas superficiais e subterrâneas numa área agrícola em Primavera do Leste, demonstrando o risco potencial que cada composto estudado apresentava naquele ambiente. No grupo avaliado, os agrotóxicos metomil, triadimefon atrazina, metribuzin, simazina, clorimuron-etil, imazetapir, flumetsulan, fomezafen, glifosato e metolaclor foram aqueles que apresentaram maior mobilidade pelo índice de GUS – índice de lixiviação de pesticidas proposto por Gustafson (1989). Embora tenha sido realizado um trabalho com dados sobre os pesticidas obtidos da literatura internacional e, portanto, de clima diferente do local, esse estudo demonstrou a necessidade e a possibilidade do uso de análises preliminares desse tipo para priorizar estudos mais detalhados de comportamento ambiental e toxicidade de agrotóxicos.

Por outro lado, estudos mais recentes na região de Primavera do Leste (DORES et al., 2002) em áreas sob cultivo intensivo de algodão, milho e soja indicaram a presença de alguns herbicidas levantados por Dores et al. (2001) na água subterrânea da região, normalmente usada para consumo humano. Todavia, as concentrações encontradas merecem análise mais apurada no sentido de definir os riscos efetivos para a saúde humana, considerando os padrões vigentes de potabilidade de água.

Considerações finais

De um modo geral, o cenário da qualidade das águas subterrâneas no Brasil ainda não é comprometedor. Todavia, são necessárias medidas preventivas para proteção de vários aquíferos, considerando as atividades agrícolas como fontes potencialmente poluidoras.

Tais medidas podem ser adotadas com sucesso, levando-se em consideração os princípios das chamadas Boas Práticas Agrícolas (BPAs).

Outro aspecto relevante e que deve ser agregado às BPAs é a necessidade de definição da aptidão agrícola das terras, o que, sem dúvida, evitaria muitos problemas de ordem ambiental e mesmo econômicas aos agricultores. Esse seria certamente o primeiro passo para a sustentabilidade dos sistemas de produção agrícola do País.

Referências

ALTENBURGER, R. Pesticides in EC drinking water: limit value may be raised. Germany: Pestizid Brief, 1993.

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