CAPÍTULO 9

AVALIAÇÃO E MONITORAMENTO DA QUALIDADE DA ÁGUA SUBTERRÂNEA NO VALE DO RIO GURGUEIA, PIAUÍ

Aderson Soares de Andrade Júnior

Ênio Farias de França e Silva

Clarice Maria Leal

Introdução

Denominado de Vale dos Poços Jorrantes, o vale do rio Gurgueia, situado na região sul do Piauí, é famoso em todo o País como região de muita água e de qualidade. Entretanto, tal fato não justifica desperdícios e exploração irracional. O uso sustentável da água é primordial ao desenvolvimento dessa nova fronteira e a gestão integrada dos recursos hídricos da bacia hidrográfica é a única forma de conter impactos irreversíveis. Para uma gestão adequada, são necessárias informações relacionadas à quantidade e à qualidade das águas superficiais e subterrâneas.

Definida como uma nova fronteira de desenvolvimento do Piauí, a região sul do estado é caracterizada como de elevado potencial, embora, a carência de estudos no vale do rio Gurgueia imprima ao planejamento da região um caráter empírico com uma série de problemas e entraves que dificultam sobremaneira o alcance da viabilidade técnica e econômica das atividades.

Em atividades antrópicas, a sustentabilidade do uso da água se embasa em dois aspectos: a qualidade da água e a quantidade de água disponível. Tais informações são primordiais para direcionar a gestão dos recursos hídricos, controlando os impactos ao ambiente. Por isso, executou-se tal projeto, para se proceder à avaliação e ao monitoramento da qualidade de água superficial e subterrânea da região do vale do rio Gurgueia, no Piauí, para fins de consumo humano e irrigação.

A geologia da bacia hidrográfica do Gurgueia é predominantemente sedimentar, com uma parte relativamente pequena da bacia constituída por aflorações do embasamento cristalino. A ocorrência de aquíferos nessa bacia é representada pelos sedimentos clásticos, médios a grosseiros, às vezes conglomeráticos, que constituem os aquíferos Serra Grande, Cabeças, e Poti, no Piauí.

Já as formações Pimenteiras e Longá, constituídas por sedimentos clásticos finos ou pelíticos, caracterizam-se mais como confinantes das formações mais arenosas subjacentes (SEMAR, 2004). Essas características geológicas inferem aos aquíferos elevado potencial hidrológico a ser utilizado para irrigação, apresentando no vale do rio, 264 poços jorrantes que explotam água provenientes dos aquíferos Serra Grande e Cabeças, a uma vazão média de 30 m3 h-1.

A maior parte da rede hidrológica é formada por riachos intermitentes, sendo os principais afluentes do rio Gurgueia os rios Corrente, Paraim, Contrato e Curimatá, que se apresentam perenes, exceto em anos de grandes estiagens.

No vale do rio Gurgueia, o desperdício de água subterrânea é fato divulgado na imprensa, ou seja, é de conhecimento da população, nem por isso menos alarmante. Os poços jorrantes continuam sem aproveitamento ao longo do tempo com o uso racional da água, alguns vertendo água há décadas, diretamente na calha desse rio.

O que intriga é que essa água é de qualidade superior, seja para consumo humano, seja para irrigação ou para atividades industriais. O rebaixamento dos níveis potenciométricos pode ser facilmente detectado, comparando-se medidas atuais com determinações de pressão de alguns anos. Isso mostra que, em médio prazo, a disponibilidade desse recurso é esgotável.

Nesse contexto, a equipe de recursos hídricos da Embrapa Meio-Norte conduziu o projeto Avaliação e Monitoramento da Qualidade de Água no Vale do rio Gurgueia, no Piauí, financiado pelo CT-Hidro/CNPq, para investigar os parâmetros mais importantes e apresentar informações, bases de dados e sugestões capazes de auxiliar no planejamento das atividades antrópicas na região sul daquele estado.

Neste capítulo, apresentam-se os dados e avalia-se o comportamento dos principais parâmetros de qualidade de água superficial e subterrânea, os quais direcionam o uso da água para consumo humano e uso em irrigação. Devido ao grande volume de informações, será apresentada apenas parte dos dados coletados em 2 anos de execução do projeto. Esses dados serão disponibilizados na íntegra, numa base de dados na Internet, a ser hospedada na página da Embrapa Meio-Norte.

Caracterização da área de estudo

A área total da bacia hidrográfica do rio Gurgueia é de aproximadamente 48830 km², o que corresponde a cerca de 20% da área total do Piauí. Localiza-se entre as coordenadas 06°48’00” e 10°52’00” de latitude Sul e entre 43°16’00” e 45° 32’00” de longitude, a Oeste de Greenwich.

Na bacia do Gurgueia, encontram-se inseridos 28 municípios: Cristalândia do Piauí, Corrente, Sebastião Barros, Parnaguá, Júlio Borges, Avelino Lopes, Gilbués, Curimatá, São Gonçalo do Gurgueia, Riacho Frio, Redenção do Gurgueia, Morro Cabeça no Tempo, Bom Jesus, Santa Luz, Guaribas, Currais, Cristino Castro, Palmeira do Piauí, Alvorada do Gurgueia, Manoel Emídio, Colônia do Gurgueia, Bertolínia, Eliseu Martins, Canavieira, Sebastião Leal, Jerumenha, Canto do Buriti e Monte Alegre do Piauí (Figura 1).

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Figura 1. Área do estudo e divisão política dos municípios inseridos na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Silva et al. (2005).

Levantamento de campo

Preparação, calibração e testes dos equipamentos usados

Nos levantamentos a campo os equipamentos usados (sondas multiparâmetros e GPS) foram calibrados no Laboratório de Solo e Água (Figura 2A) e na Estação Meteorológica da Embrapa Meio-Norte, respectivamente.

Os altímetros dos GPSs foram recalibrados em referências de nível (RN) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em Bom Jesus, em Correntes e em Monte Alegre (Figura 2B).

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Figura 2. Vista do laboratório e soluções de calibração da sonda multiparâmetro para determinação da qualidade de água (A) e calibração do altímetro de um GPS usado no trabalho (B).

Fotos: Ênio Farias de França e Silva

Levantamento de campo e análises

Cadastramento de inventário das fontes de água

Em formulários específicos, foram cadastradas e inventariadas para fontes subterrâneas e superficiais, 153 fontes de água na bacia hidrográfica do rio Gurgueia. As informações obtidas em campo – e registradas nos formulários – foram compiladas num banco de dados Access, para futura disponibilização em website.

As fontes de água cadastradas e inventariadas encontram-se espacializadas na bacia hidrográfica delimitada a partir de imagem de satélite e modelo de elevação digital (Figura 3).

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Figura 3. Mapa da área de estudo com os pontos de coleta de água georreferenciados.

Fonte: Embrapa (2006).

Procedimentos de análises e metodologias de coleta

Análises físico-químicas em campo e laboratório

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Figura 4. Análise físico-química da água com uso de sondas no rio Gurgueia.

Foto: Ênio Farias de França e Silva

As águas dos poços e tributários foram analisadas físico-quimicamente em campo (Figura 4), em tempo real, com sondas para determinação da qualidade, as quais possibilitam a determinação no local das seguintes variáveis):

• Condutividade elétrica.

• Salinidade.

• Sólidos totais dissolvidos.

• pH.

• Potencial redox.

• Oxigênio dissolvido.

• Clorofila.

• Turbidez.

• Temperatura.

• Concentração de nitrato.

• Concentração de amônio.

• Concentração de amônia.

• Concentração de cloreto.

Coletaram-se amostras de água, as quais foram acondicionadas em garrafas de plástico de 1 L e encaminhadas ao laboratório logo depois de feita a coleta. No Laboratório de Solos da Embrapa Meio-Norte, em Parnaíba, PI, foram determinadas as seguintes variáveis, de acordo com a metodologia recomendada pela Embrapa (1997):

• Carbonato.

• Bicarbonato.

• Cálcio.

• Magnésio.

• Sódio.

• Potássio.

A partir dessas variáveis, foi possível estimar algumas variáveis secundárias, como a relação de adsorção de sódio (RAS), a qual é de suma importância para avaliar a potencialidade do uso da água e os possíveis impactos, ou seja, o poder de sodificação do solo quando usada a técnica de irrigação.

Análises microbiológicas

Para se conhecer a qualidade microbiológica da água, foram quantificados os coliformes totais e fecais presentes nela. Por causa da ausência de laboratórios especializados na região – e pelas características dessa técnica que requer determinação em 24 horas após a coleta – usou-se uma metodologia desenvolvida numa parceria da Embrapa com a Alfatecnoquímica (EMBRAPA, 2003).

A referida metodologia consiste de fitas indicadoras, as quais permitem quantificar essas variáveis em campo, com praticidade, economia e rapidez. Esse tipo de fita é dotado de um meio de cultura e indicadores específicos que produzem coloração azul, para as colônias de coliformes fecais, e coloração vermelha, para os não fecais. A somatória de ambas as cores corresponde aos coliformes totais presentes.

A contabilização do número de colônias ocorre após um período de incubação de 24 horas a uma temperatura constante de 37 oC. A Figura 5 mostra o uso da fita em campo, bem como os resultados visuais após incubação numa estufa portátil, usada no levantamento.

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Figura 5. Fitas bacteriológicas e estufa portátil para determinação quantitativa de coliforme total e fecal, em campo.

Fotos: Ênio Farias de França e Silva

Determinação dos níveis estáticos das águas subterrâneas

Determinaram-se os níveis estáticos a partir do uso de medidores de níveis freáticos, de 100 m de comprimento. Para se conhecer a superfície freática e verificar rebaixamentos por meio de medidas, no futuro, foram determinados os níveis estáticos (Figura 6A). Para os poços jorrantes, usaram-se manômetros tipo Bourbon, para determinar a pressão piezométrica (Figura 6B).

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Figura 6. Determinação de níveis freáticos (A) e pressão piezométrica (B), durante o levantamento de campo.

Fotos: Ênio Farias de França e Silva

Contudo, algumas dificuldades foram observadas, como:

• Ocorrência de poços com profundidade superior a 100 m.

• Poços com tela interna, para não permitir que objetos estranhos atinjam a água no fundo do poço, contaminando-a.

• Poços obstruídos por vandalismo, por solapamento ou pela ausência de revestimento e características do solo.

Georreferenciamento das fontes pontuais de poluição

Foram georreferenciadas e inventariadas 42 fontes pontuais de poluição nos municípios. Dentre as fontes de poluição, estão cemitérios (Figura 7), lixões e lançamento de efluentes, subestação de energia elétrica, postos de combustíveis e postos de saúde.

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Figura 7. Cemitério municipal de Cristino Castro, à margem direita do rio Gurgueia, PI.

Foto: Ênio Farias de França e Silva

A pequena quantidade de fontes pontuais não significa que não ocorram impactos ao meio ambiente. A falta de medidas mitigadoras está presente em todos os pontos inventariados.

Além disso, verificou-se que a maior parte dos pontos de poluição, correspondendo a mais da metade do total levantado, são cemitérios e lixões, onde inexistem medidas de controle ou técnica para evitar a contaminação do aquífero por necrochorume e chorume dos resíduos sólidos.

Esse problema é agravado porque os níveis estáticos encontram-se a profundidades muito próximas da superfície. Assim, torna-se urgente e obrigatória a implantação de programas de gestão de resíduos sólidos e a adequação dos cemitérios, de acordo com as normas apropriadas, assim como remediação das áreas já afetadas.

Observou-se, ainda, que a poluição ocorre de forma difusa. Como exemplos, podem-se citar: evacuação de dejetos humanos (fezes e urina) em ambiente natural e lançamento de efluentes a céu aberto. Apesar de difusas, essas poluições citadas são extremamente nocivas à saúde da população.

Quantidade de análises feitas

Após o término do trabalho de campo, as análises foram computadas e suas quantidades por município estudado podem ser observadas na Tabela 1, para água subterrânea. Nota-se que a quantidade de análises feitas não é a mesma da quantidade de fontes cadastradas. Esse fato só ocorreu quando o poço encontrava-se equipado e o sistema de bombeamento estava com defeito, não sendo possível a coleta de água nem de forma manual, por sondas de coleta ou ainda quando o poço encontrava-se obstruído.

Tabela 1. Quantidade de análises da água subterrânea feitas nos levantamentos de campo.

Período do Levantamento

Número de poços cadastrados

Número de poços amostrados

Número de amostras realizadas

Número de níveis potenciométricos determinados

Químicas

Microbiológicas

Período chuvoso

148

132

132

132

112

Período seco

153

143

143

143

120

Fonte: Embrapa (2006).

Qualidade da água subterrânea

As amostras de água foram coletadas durante 2 anos, em períodos seco e chuvosos em 105 poços tubulares georreferenciados. A escolha dos pontos amostrais foi preestabelecida a partir de uma base de dados proveniente do cadastro de poços da CPRM, na região (CPRM, 2005).

Observando-se os valores de condutividade elétrica das águas no banco de dados, foi feita uma análise de agrupamento, sendo definidos cinco grupos homogêneos e 21 pontos em cada grupo, de modo a espacializar a amostragem em toda a bacia hidrográfica.

Em tempo real, foram determinadas, em campo, as seguintes variáveis:

• Condutividade elétrica (CE) e pH por intermédio de uma sonda YSI modelo 9600.

• Em laboratório, foram determinados os seguintes íons: sódio (Na), cálcio (Ca), magnésio (Mg), cloreto (Cl), carbonato (CO3), bicarbonato (HCO3) e sulfato (SO4), de acordo com a metodologia proposta pela Embrapa (1997).

Com base na concentração desses íons, foram estimados os valores de carbonato de sódio residual (CSR) proposto por Eaton (1949) e a relação de adsorção de sódio (RAS) apresentada por Yaron (1973), modelos respectivamente apresentados nas equações 1 e 2:

CSR = (CO3 + HCO3) (Ca + Mg)

(1)

sendo, as concentrações de CO3, HCO3, Ca, Mg na água expressas em mmolc L-1.

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(2)

sendo, as concentrações de Na, Ca e Mg na água expressas em mmolc L-1.

Num sistema de informações geográficas (SIG), foram elaborados mapas temáticos das varáveis analisadas, sendo usada a krigeagem como interpolador.

Nesses mapas, foram determinadas áreas com três classes de restrição de uso de água, denominadas de nenhuma restrição, moderada restrição e severa restrição. Os limites das classes são mostrados na Tabela 2.

Tabela 2. Classes de restrição de uso da água para irrigação, de acordo com a qualidade.

Variáveis

Classes de restrição de uso para irrigação

Nenhuma

Moderada

Severa

CE (dS m-1)

<0,7

0,7 a 3,0

>3,0

Na (mmolc L-1)

<3,0

>3,0

-

Ca + Mg (mmolc L-1)

<5,0

5,0 a 15,0

>15,0

CO3 (mmolc L-1)

<0,1

0,1 a 0,2

>0,2

HCO3(mmolc L-1)

<1,5

1,5 a 8,5

>8,5

Cl (mmolc L-1)

<3,0

>3,0

-

SO4 (mmolc L-1)

<10

10 a 30

>30

CSR (mmolc L-1)

<1,25

1,25 a 2,5

>2,5

Fonte: Ayers e Westcot (1985) e Yaron (1973).

A Tabela 3 mostra as classes de restrição de uso para irrigação com risco de sodificação do solo, combinando a RAS e a CE da água de irrigação, para evitar problemas de infiltração da água com posterior processo de sodificação do solo. Os limites das classes de restrição de uso para irrigação foram baseados nos valores determinados por Ayers e Westcot (1985).

Por meio de tabulação cruzada, foi gerado um mapa para indicar as áreas providas de águas subterrâneas com características combinadas de CE e RAS, possíveis de serem utilizadas.

Tabela 3. Classes de restrição de uso da água para irrigação de acordo com a qualidade, para evitar problemas de infiltração de água no solo e posterior processo de sodificação.

RAS (mmolc L-1)½

Classes de restrição de uso para irrigação

Nenhuma

Moderada

Severa

Condutividade elétrica (dS m-1)

0 a 3

>0,7

0,7 a 2,0

<2,0

3 a 6

>1,2

1,2 a 0,3

<0,3

6 a 12

>1,9

1,9 a 0,5

<0,5

12 a 20

>2,9

2,9 a 1,3

<1,3

20 a 40

>5,0

5,0 a 2,9

<2,9

Fonte: Ayers e Westcot (1985).

No Diagrama de Piper (Figura 8), pode-se verificar que as águas subterrâneas da bacia do rio Gurgueia apresentam-se predominantemente em dois grupos, sendo as amostras em maior número de águas cloretadas magnesianas, seguidas das bicarbonatadas magnesianas, que não ultrapassam 15% das amostras e algumas águas bicarbonatadas sódicas em menor número.

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Figura 8. Diagrama de Piper para águas subterrâneas na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Ênio Faria de França Silva.

Os valores de condutividade elétrica (CE) medidos nas amostras de água foram em média de 0,13 dS m-1, sendo que apenas uma amostra superou o valor de 0,70 dS m-1, sugerido por Ayers e Westcot (1985) como limite para classe de nenhum risco para uso da água na irrigação (Tabela 4).

Tabela 4. Parâmetros estatísticos para as variáveis de qualidade de água analisadas.

Variáveis

Mínimo

Máximo

Média

Desvio-padrão

pH

4,38

9,01

7,54

0,62

CE (dS m-1)

0,01

0,88

0,13

0,18

Ca (mmolc L-1)

0,02

2,92

0,54

0,63

Mg (mmolc L-1)

0,00

4,72

0,56

0,77

Na (mmolc L-1)

0,00

7,52

0,92

1,63

K (mmolc L-1)

0,00

1,17

0,18

0,18

HCO3 (mmolc L-1)

0,15

16,47

1,71

2,21

CO3 (mmolc L-1)

0,00

0,82

0,07

0,16

Cl (mmolc L-1)

0,04

21,27

1,21

2,11

SO4 (mmolc L-1)

0,00

2,5

0,1

0,36

RAS (mmolc L-1)½

0,00

21,70

1,51

3,99

CSR (mmolc L-1)

-1,06

5,58

0,56

1,17

Fonte: Silva et al. (2005).

Em apenas um poço, pode-se verificar que a água apresenta condutividade elétrica superior a 0,70 dS m-1, ou seja, valores de condutividade elétrica baixos que inferem limites da relação de adsorção de sódio (RAS), segundo Ayers e Westcot em 3 mmolc L-1. Dentre as amostras analisadas, sete delas apresentaram valores de RAS maiores que o valor sugerido, indicando riscos de sodificação do solo, se essas águas forem utilizadas para fins de irrigação (LEAL et al., 2006).

Os valores de concentração de HCO3 mostraram-se superiores ao limite para nenhuma restrição em 35% das amostras analisadas com valor médio de 1,71 mmolc L-1, que de acordo com Ayers e Westcot (1985) o limite seria de 1,5 mmolc L-1. Só numa amostra obteve-se concentração que classifica a água como de severa restrição.

Essa presença de bicarbonato infere, à água, um pH alcalino. A Figura 9 mostra maiores frequências entre pH de 7 a 9 e, a Figura 11, a distribuição espacial desse parâmetro na bacia hidrográfica.

Das amostras analisadas, 14 apresentaram concentração de carbonato de sódio residual acima de 1,25 mmolc L-1 e 7 amostras com valores superiores a 2,5 mmolc L-1, classificando essas amostras de água como de restrição moderada e severa para irrigação. Entretanto, 87% das amostras mostraram resultados inferiores aos 1,25 mmolc L-1, sugeridos por Ayers e Westcot (1985).

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Figura 9. Histograma de frequências de condutividade elétrica e potencial hidrogeniônico para as amostras de água subterrânea da bacia do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Silva et al. (2005).

Condutividade elétrica

A Figura 10 mostra a condutividade elétrica da água subterrânea na região de estudo. Em toda a bacia hidrográfica, os valores encontram-se abaixo de 0,7 dS m-1, sendo a maior salinidade encontrada entre 0,3 dS m-1
e 0,45 dS m-1 no sul da bacia, região sobre o embasamento cristalino, cobrindo integralmente os municípios de Cristalândia do Piauí e Sebastião Barros, e parcialmente os municípios de Júlio Borges, Parnaguá, Corrente e Avelino Lopes, com 83%, 50%, 41% e 5% da área, respectivamente.

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Figura 10. Condutividade elétrica da água subterrânea na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Embrapa (2006).

De acordo com Ayers e Westcot (1985), água com condutividade elétrica menor que 0,7 dS m-1 não oferece nenhuma restrição para uso na irrigação (LEAL et al., 2006).

Potencial hidrogeniônico – pH

Os valores de pH variaram de 5,3 a 7,9, distribuídos espacialmente na Figura 11. Ayers e Westcot (1985) afirmam que uma faixa normal de pH está compreendida entre valores de 6,5 a 8,4.

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Figura 11. Potencial hidrogeniônico da água subterrânea na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Embrapa (2006).

Contudo, Nakayama (1982) afirma que não existe restrição para águas com pH abaixo de 7, com restrição moderada para águas com pH entre 7 e 8, e com severa restrição para pH acima de 8, em relação à obstrução de emissores para irrigação localizada.

Os menores valores de pH encontram-se no centro da bacia hidrográfica, ou seja, no vale do rio. Tal fato deve-se, provavelmente, à profundidade de alguns poços existentes nessa região, as quais exploram camadas geológicas diferentes da maioria, no caso, o aquífero Serra Grande, de características hidrogeológicas discrepantes.

Concentração de sódio

A Figura 12 mostra a concentração de sódio com valores superiores ao preconizado por Ayers e Westcot (1985) apenas em três pontos isolados, localizados nos municípios de Cristalândia do Piauí e Bom Jesus, e entre os municípios de Canavieira e Bertolínia.

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Figura 12. Concentração de sódio na água subterrânea na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Embrapa (2006).

Esse fato indica a necessidade de observação na concentração de sódio nesses municípios. Caso a concentração de sódio seja superior a 3 mmolc L-1 não se recomenda a irrigação por aspersão, diante da possibilidade de toxidez, caso as folhas das plantas forem molhadas durante a aplicação de água.

Concentração de cálcio e de magnésio

Em toda a região do estudo, os valores encontrados para a concentração de cálcio+magnésio foi inferior a 5 mmolc L-1 (Figura 13), ou seja, segundo Ayers e Westcot (1985), esses valores não apresentam nenhuma restrição para o uso na irrigação.

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Figura 13. Concentração de cálcio e magnésio na água subterrânea na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Embrapa (2006).

Concentração de carbonato

A Figura 14 mostra as isolinhas de concentração de carbonato. Nela, observa-se que a maior parte da área de estudo não apresenta nenhuma restrição, o que é indicado pela cor amarela, enquanto os locais indicados pela cor rósea possuem moderada restrição de uso em consequência de risco de sodificação do solo. Holanda e Amorim (1997) relatam que o carbonato facilita a precipitação do Ca (cálcio) e do Mg (magnésio), elevando a RAS da água.

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Figura 14. Concentração de carbonato na água subterrânea na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, PI.

Fonte: Embrapa (2006).

Concentração de bicarbonato

A concentração de bicarbonato na água subterrânea infere risco de sodificação de forma moderada apenas nos municípios de Canavieira, Curimatá, Jerumenha, Parnaguá, Riacho Frio e Sebastião Leal, com 14%, 28%, 87%, 9%, 9% e 29% das áreas dos municípios, respectivamente, sendo que a maior parte da bacia hidrográfica é isenta desse risco.

O bicarbonato e o carbonato promovem a precipitação do cálcio e do magnésio, interferindo na RAS da água (Figura 15).

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Figura 15. Classes de restrição do uso da água para irrigação visando evitar a sodificação do solo com base na concentração de bicarbonato na água subterrânea.

Fonte: Embrapa (2006).

Concentração de cloreto e de sulfatos

Em toda a bacia hidrográfica, os valores de concentração de cloreto e de sulfatos na água subterrânea são inferiores aos padrões estabelecidos por Ayers e Westcot (1985) para irrigação, não caracterizando nenhum risco de toxidez (Figuras 16 e 17).

CAP_09_FIG_16.eps

Figura 16. Concentração de cloreto na água subterrânea na bacia hidrográfica do rio Gurgueia.

Fonte: Embrapa (2006).

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Figura 17. Concentração de sulfato na água subterrânea na bacia hidrográfica do rio Gurgueia.

Fonte: Embrapa (2006).

Classes da restrição de uso da água para irrigação

A Figura 18 mostra as classes da restrição de uso da água para irrigação em relação ao carbonato de sódio residual (CSR). Nota-se que apenas áreas parciais em Gilbués e em Monte Alegre, com 54% e 37%, respectivamente, apresentam severa restrição, sendo que a maior parte da bacia hidrográfica não apresenta nenhuma restrição (SILVA et al., 2005).

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Figura 18. Classes de restrição do uso da água subterrânea para irrigação com base no carbonato de sódio residual.

Fonte: Embrapa (2006).

A baixa condutividade elétrica não traz risco de salinização, mas águas com baixa salinidade podem provocar problemas de infiltração ocasionados por processos de sodificação do solo. Segundo Holanda e Amorim (1997), a análise conjunta da RAS, com a condutividade elétrica, permite demonstrar que quanto maior for a salinidade, menor será o risco de infiltração (Figura 19).

CAP_09_FIG_19.epsFigura 19. Classes de restrição do uso da água subterrânea para irrigação com base na relação de adsorção de sódio e condutividade elétrica.

Fonte: Embrapa (2006).

Observa-se ainda que o risco de sodificação na bacia hidrográfica é pertinente e que apenas os municípios de Cristalândia do Piauí e 5% e 7% dos municípios de Sebastião Barros e Corrente, respectivamente não apresentam nenhuma restrição. A maior parte da área apresenta-se como de moderada restrição para uso da água subterrânea para irrigação, sugerindo critérios técnicos para utilização da água subterrânea.

A Figura 19 mostra duas regiões com severa restrição para irrigação. Nessas regiões, só é possível usar a água para irrigação, caso o solo apresente textura predominantemente arenosa.

Na bacia hidrográfica do rio Gurgueia, a água subterrânea não oferece nenhum risco de salinização do solo (SILVA et al., 2006). Alguns parâmetros indicam risco de sodificação do solo, caso se utilize a água subterrânea para irrigação sem critérios técnicos. A utilização dessas águas deve ser feita com cautela, recomendando-se manejo adequado.

Nas regiões que apresentaram limitações quanto aos problemas de infiltração da água no solo, deve-se evitar a aplicação da água em solos com baixa permeabilidade e drenagem deficiente. Outros métodos de irrigação devem ser empregados nas áreas em que se constatou risco de toxicidade na irrigação por aspersão.

Construção do banco de dados

Os resultados de qualidade de água e de mapas temáticos permitiram a estruturação de uma base de dados para monitoramento e planejamento de gestão da bacia hidrográfica do rio Gurgueia, a ser apresentado on-line na rede mundial de computadores em site específico, o qual disponibilizará ainda diferentes informações sobre a região de estudo.

Na tabulação das informações para o banco de dados, tabelas com os resultados das análises feitas e demais dados coletados em campo foram elaborados no programa Access, sendo convertidas para arquivo em formato texto, e deste, por meio de aplicação desenvolvida numa linguagem de programação voltada para o desenvolvimento na Web.

Com o auxílio da linguagem PHP (Hypertext Preprocessor), as informações dos arquivos foram gravadas, diretamente, no banco de dados, o qual será disponibilizado no website da Embrapa Meio-Norte1.

O banco de dados usado para o armazenamento on-line das informações foi o MySQL, sistema de gerenciamento de banco de dados SQL Open Source. O sistema web, que está inserido dentro do site, possibilita consultas às informações disponíveis no banco de dados.

O banco de dados permite ao usuário obter informações de qualidade da água de cada poço analisado, características construtivas, hidrogeológicas e de posição geográfica; mapas temáticos relacionando a qualidade da água para múltiplos usos, em diferentes épocas sazonais; georreferenciamento das principais fontes pontuais de poluição e o inventário ambiental destas, por meio de um sistema de busca avançado (Figura 20).

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Figura 20. Diagrama de funcionamento do banco de dados de qualidade de água subterrânea na bacia do rio Gurgueia.

Fonte: Embrapa (2006).

O usuário tem ainda acesso a informações gerais como: a delimitação da área de estudo destacando-se os municípios envolvidos, todas as etapas e procedimentos metodológicos usados em campo, o registro de todo o percurso realizado durante as coletas sob a forma de trilhas traçadas pelo GPS, além de poder conferir todos os trabalhos publicados pela equipe executora do projeto. O banco de dados visa a disponibilização das informações de forma facilitada ao público em geral. A Figura 21 mostra o design do website.

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Figura 21. Página inicial do website de qualidade de água do vale do rio Gurgueia.

Fonte: Embrapa (2006).

Propostas para gestão sustentável

A implementação de um comitê gestor na região de estudo é emergencial e extremamente necessária. A intercomunicação natural da água superficial e subterrânea nessa região torna necessária uma preocupação integrada com ambas as fontes de água. Em decorrência das observações feitas e dos estudos apresentados, são propostas algumas medidas:

• Definição de prioridades para o uso da água.

• Definição dos tipos de ocupação e atividades nas áreas de recarga direta com potencial de contaminação.

• Gerenciamento da oferta e da demanda de água, com ações de conscientização da população.

• Controle dos poços existentes, evitando-se desperdícios na concessão de outorga de novos poços.

• Controle da distância entre poços, para evitar a formação de cones de depleção.

• Controle das perdas no processo de distribuição para a população.

• Uso combinado do recurso hídrico subterrâneo e superficial pela construção de adutoras até os centros de consumo em barramentos já existentes.

• Reuso das águas servidas após tratamento.

• Aumento da recarga por meio de medidas como poços de injeção, barragens subterrâneas e construção de represamento em área de recarga.

• Proteção dos poços e implementação do Perímetro Imediato de Proteção Sanitária (Pips), cuja área mínima é de 10 m x 10 m em torno do poço; outras zonas de proteção de poços como Perímetro de Alerta (PA); Zona Proximal de Restrição e Controle (ZPRC); e Zona Distal de Restrição e Controle (ZDRC).

• Programa de monitoramento por meio de uma rede de observação dos níveis potenciométricos.

• Programa integrado de adequação dos cemitérios e da destinação dos resíduos sólidos.

• Incentivo para pesquisa sobre águas subterrâneas e de alternativas visando a sustentabilidade das atividades na bacia hidrográfica do rio Gurgueia.

Considerações finais

Em relação aos aspectos físico-químicos e biológicos, a qualidade da água subterrânea apresenta heterogeneidade acentuada na área de estudo e o levantamento e apresentação na forma de mapas temáticos pode ser uma ferramenta importante na implementação de ações governamentais em projetos de desenvolvimento sustentável e para programas de melhoria da água para consumo humano.

A exploração da água subterrânea – sem critério e outorga – potencializa o rebaixamento do nível potenciométrico de forma acelerada, principalmente nos pontos de concentração de poços, que geram cones de depressão. Essa situação pode tornar economicamente inviável a exploração da água subterrânea e consequentemente as atividades antrópicas.

A carência de políticas públicas em relação ao gerenciamento de efluentes e destino final para os resíduos sólidos, além de projetos adequados para construção de cemitérios – principalmente sobre a área de recarga do aquífero Serra Grande – tem possibilitado pontos de contaminação da água subterrânea.

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